FERNANDO PESSOA & JOÃO JUSTINIANO DA FONSECA




















Pessoa e João — LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA



Aniversário
Fernando Pessoa

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

 Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho…)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

 O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!






A "Coroa de Sonetos" de João Justiniano da Fonseca


O Ancião e o Moço
João Justiniano da Fonseca

Inspiração em Luiz Guimarães Júnior

 – em Visita à Casa Paterna. Datam os nove primeiros sonetos de 27 e 30 de junho, após o Salvador dizer-me que visitou o Rapador, de onde me trouxe, de lembrança, um seixo rolado. Os demais de 06 e 09 de outubro de 2009.


I


Que distância no tempo... Tanto, tanto...
A fazenda que foi do bisavô
E passou-se a meu pai. Olho-a e me espanto:
— Tanque, casa e curral, a era os levou.

  Foi aqui, bem me lembro. Este o recanto
Onde vivi a infância. Não ficou
Nem um sinal. Ó mágoa, ó desencanto!
Envelheci distante, o ontem voou! 

 Tarde volto. Dizendo-o me embaraço.
Por quê? Por nada. O depois do depois.
O que está longe de mim e anda comigo. 

 Pecado humano, a luta por espaço.
Revejo triste, o que se descompôs:
Meu chão humanizado, velho amigo.




 II



Meu chão humanizado, velho amigo,
Vindo hoje em retorno à mocidade,
Quis sentir o prazer da liberdade
De infante e adolescente, e estar contigo. 

Nem mais ruínas do solar antigo,
Tão só destroços da remota idade.
O tempo destruiu sem piedade
Meu chão rural. Pôs tudo no jazigo! 

Morto, eis morto o passado. Fiz tão pouco
Do meu imaginário santo e louco...
Não alcancei o céu, o sempiterno. 

Aqui e agora. Iluminado ancião,
Eu, de retorno ao meu remoto chão.
Em saudade desfez-se o lar paterno.




 III 



Em saudade desfez-se o lar paterno.
Alquebrado do tempo na corcunda,
Longos sulcos na alma, dor profunda,
Busco e não acho o ontem doce e terno! 

Porque voltei tão tarde, indago o eterno,
Cuja resposta eterna, vem oriunda,
Do tempo que a si e a mim fecunda,
E gera a eternidade, céu e inferno. 

Vem do Alto a resposta, ou habita em mim?
Vivo o passado ou o sonho? O Serafim,
Morreu talvez, durante o longo inverno... 

Só sei que vim e me arrepende a vinda.
Como quem sai do limbo da era finda,
Esbarro bruscamente no moderno.




 IV



Esbarro bruscamente no moderno,
E o ontem reviver a alma comove!
Supus-me, assim, tornado ao lar paterno,
Falsa lembrança, meu verão não chove... 

 Pensara isso apenas, manso e terno,
Pisando a erva do solar de Jove.
O solo é meu, supus, também eterno.
E em mim, a alma dos deuses se promove. 

 Essas coisas simplórias de profetas,
Não me perguntem por que sinto e digo,
Vivem em mim e movem-se inquietas... 

 Em mim reside o sol de um ente antigo,
Sinto-o pulsar em vibrações secretas,
Do ontem acordado e ao desabrigo...




V



Do ontem acordado e ao desabrigo,
Mamãe, meu pai, os seis irmãos... Um sonho!
Tempos de vida simples, ar risonho,
Dias vividos que ainda estão comigo... 

Se pudesse voltar a estar consigo,
Meu abrigo da infância... — Eu lhe proponho
Um faz de conta: Eu, Aldi, Antônio,
Domingos, Nita, Né... Ah! Deus amigo! 

Salvador com problemas no joelho...
Eu rusgando, rusgando... Meu bedelho
À vista e exposto para meu castigo. 

Feito um menino inquieto, assim vivi.
Teimava e re-teimava... Agora, aqui,
O desencontro do solar antigo...




 VI



O desencontro do solar antigo
Teimosamente os passos a seguir-me.
Se caio o gênio ergue-me e põe firme,
Nunca me deixa só e ao desabrigo. 

Oh! Meu teimoso anjo! A dor, comigo,
Acolhe-a para si e deixa ir-me
Do mal ileso. Impõe-me que o confirme
Obrigado a sofrer o meu castigo. 

Agradeço, Senhor, humildemente,
O gênio que puseste à minha frente,
Brigão, teimoso horas, horas terno. 

 Ao menos sou autêntico e sem medo
De assumir a mim mesmo, sem segredo,
O fantasma do tempo na alma interno.



 VII



O fantasma do tempo na alma interno,
Confunde-se em meu ser, manso e tranquilo.
No agora já não sou, em tudo aquilo,
O teimoso, o brigão de sol a inverno. 

Apanhado e sofrido, sem berilo,
Sem ouro no colar... Surrado terno,
Por vestimenta de verão a inverno,
Não passo de um desnudo e velho esquilo... 

Abram alas. Lá vou, o charlatão,
Não de ouro o dedal, sim de latão,
Sob o tempo curvado e não moderno. 

Triste comigo o tempo, carcomido,
Meu parceiro de nada, desvalido,
É velho e triste. Triste, velho e terno... 




 VIII



É velho e triste. Triste, velho e terno,
O tempo e não me quer feito criança,
Para bailar comigo a antiga dança
Da meninice de verão a inverno. 

A sombra de meu pai! O mundo externo,
Nada importava a si. A alma descansa
Sem dúvida com Deus, simples e mansa,
Eis, para os bons, não se destina o inferno. 

Por toda a vida segurou a herança
Que recebeu do avô, feita aliança,
Para o sustento – leite, vinho e trigo. 

Agora, tudo em nada, o chão poeirento,
Sopra-o continuamente o rouco vento,
Chora o passado, chora-o comigo!




 IX



Chora o passado, chora-o comigo,
Num lamento de dor e extrema – unção,
Que alcança o cérebro e o coração
Como a lembrar-me o fim, se bem o digo... 

Eis me sustenta a fé, que adubo e irrigo,
Nas terras ásperas da aluvião,
Como adubava o pai milho e feijão,
Para o sustento, o agasalho, o abrigo. 

Oh saudade! Oh saudade!Ajoelhado
Sobre meu chão de lágrimas molhado,
Aqui estou... Não deixa ir-me embora... 

Ajoelha-te comigo, vem, saudade!
Molhem as nossas lágrimas a idade.
Conosco, por igual, a idade, chora...



 X



Conosco, por igual, a idade chora
E reza a Ave Maria do que foi.
Curral, cabra e cabrito, vaca e boi,
Tudo, saudade, em minha mente, agora... 

No todo o tempo (dia e noite, aurora),
Pendula-me na mente. E rói. E rói!
Eis, o passado aos poucos me destrói
Sonho e esperança. Leva tudo embora... 

Como estilhaça a idade e faz ruína,
Como põe termo à vida pequenina,
E passa, e relampeia sem demora... 

Feita em saudade e mágoas, em lembrança,
Resvala em ancião minha criança,
Nos anos, noite e dia, hora a hora.



 XI



Nos anos noite e dia, hora a hora,
Em ida inapelável, para frente,
Deixa na esteira, indiferentemente,
Glórias, pendengas... O ontem e o agora... 

A soma do passado, aqui sonora,
Ali silenciosa, apressa, urgente,
Tudo que deixo. A História, paciente,
Vai-se cozendo e se montando escora. 

Na somatória, glórias e derrotas,
Verdades límpidas, brutais patotas,
Mares, estrelas, água clara e mangue...

Contam-se os anos... Tempo, era e mais era,
E a vida corre. Em frente! Não espera.
Doridas lágrimas de fel e sangue.




 XII



Doridas lágrimas de fel e sangue,
Abotoam-se em mim vendo a paisagem...
Nada do ontem! Nem remota imagem
Que o hoje marque. Coração exangue 

E idade em luta! Ou é uma visagem
Do outrora morto, o tempo feito em gangue
Que assalta e agride, que faz tudo em sangue,
Indiferente e frio, sem linhagem? 

Pode ser tudo. Não, jamais, a glória
Do que vivi e tenho na memória
Ainda infante — simples, prazenteira! 

Retorno à adolescência e à mocidade,
Ao tempo que se foi sem piedade...
Oh mágica ilusão de vida inteira!




 XIII



Oh mágica ilusão de vida inteira!
Depois que me apartei da antiga herdade,
Andei em busca da felicidade,
Que me aprouvesse vida prazenteira,

Tal qual a idealizei à hora primeira, 
Tal qual no sempre a quis. Na realidade
Estava em mim, sem ver-lhe a identidade,

Sem percebê-la como verdadeira. 
Vogava no meu barco e eu não a via
Comigo comungando noite e dia,
Olhos firmes à frente, de viseira.

Eras real em mim felicidade,
E eu não te percebi, triste verdade...
Não percebi a íngreme ladeira.




 XIV



Não percebi a íngreme ladeira,
Os ínvios dos caminhos a cursar...
Andei sem encontrar-me, ao perpassar
As curvas da montanha, em longa esteira. 

Andava mais e desde a hora primeira,
Nunca parei, nem ia devagar...
Antes, corria, sem jamais parar,
Na ânsia de produzir. Uma cegueira! 

Um moço no labor, um sem idade...
Muito amor, muita fé, muita vontade
No sonho, o rebater de haxixe e bangue... 

Agora aqui, no meu final de vida,
Oitenta e nove, e vivo a mesma lida...
 — Por Deus, meu chão amigo, não se zangue!




 SÍNTESE 


Meu chão humanizado, velho amigo!
Em saudade desfez-se o lar paterno,
Esbarro bruscamente no moderno,
Do ontem acordado e ao desabrigo... 

O desencontro do solar antigo...
O fantasma do tempo na alma interno.
É velho e triste. Triste, velho e terno...
Chora o passado, chora-o comigo! 

Conosco, por igual, a idade, chora...
Nos anos, noite e dia, hora a hora.
Doridas lágrimas de fel e sangue. 

Oh mágica ilusão de vida inteira!
Não percebi a íngreme ladeira.
Por Deus, meu chão amigo, não se zangue!




O que é uma  "Coroa de Sonetos"?
Mais sobre "Coroas de Sonetos" do poeta João Justiniano da Fonseca no e-book:






http://joaojustinianofonseca.blogspot.com.br

(ACERVO)

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