* CATARINA FONTAN (França / Brasil)






Meu Galo Chico
Catarina Fontan

      Acordei preguiçosa! A casa estava vazia de frutas e verduras, o corpo ensoado, a alma infensa...
     Quase perco o horário da feirinha! Comprei aipo, couve, belas cebolas.... Algumas barraquinhas, já desarmadas,  despediam-se com a chegada da chuva fina. Como gosto da chuva, dou-lhe a face e sinto que ela me lava a alma por cortesia.
     Percebi a aflição do jovem alagoano que toda semana levava seus pintinhos para vender na feirinha. Eu não aprovo isso e restava-me rezar pelos pintinhos que dalí saíam com vida. O rapaz estava nervoso, gritava com o pintinho na mão, porque ele sobrara entre tantos e, conciliado à chuva, parecia atrapalhar seus planos. Aproximei-me do alagoano e ofereci ajuda, mas ele queria mesmo era vender o pintinho, porque a caixa de papelão se desfizera com a chuva. Negou quando lhe perguntei se queria doar o pintinho e então fui contra os meus princípios para salvar o indefeso bichinho da irritação daquele comerciante. Após pagar pela ave tão criança, determinei que esqueceria aquele momento e me envergonharia de relatar aos meus amigos o que fizera. Coloquei o pintinho dentro do sutiã para protegê-lo da chuva e fomos com destino à nossa casa.
      Precisei ter uma séria conversa com meus outros companheiros, a gatinha Virgínia, o cãozinho Banga e a  arara Sereia. Afinal, todos precisariam respeitar o infante Chiquinho, assim passei a chamá-lo.
     A primeira semana foi muito difícil. Chiquinho tornou-se alvo de brincadeiras desajeitadas de Banga e Virgínia, mas acabaram se entendendo. Ele dormia comigo na cama e precisei me acostumar a adormecer com a lâmpada do abajur acesa, pois piava muito como se me confessasse o seu medo de escuro. Virgínia ficava com insônia pela lâmpada acesa, mas Chiquinho sonhava...
    Viciou-se no meu ombro e viciei-me em andar todo o tempo pela casa com ele ali. Joelma, boa vizinha e amiga, confeccionou-me uma veste plástica, evitando que eu trocasse de roupa cada vez que Chiquinho me sujasse ao atender suas necessidades fisiológicas. Cheguei a pensar em fraldas, mas como fazer fraldas para um pinto? Aos poucos, Chiquinho entendeu que precisava descer do meu ombro para viver normalmente como um galo, mas nunca abriu mão de dormir na cama.
    Um dia, chamou-me para uma conversa adulta, fazendo-me ver que já havia se tornado um galo e não ficaria bem ser chamado de Chiquinho. Emocionava-me ver aquele galo tão grande, cobrando aconchegos da gata Virgínia. Ela não podia se deitar encolhida, porque ele queria se abaixar sobre ela e a bicava com carinho até que ela cedesse.
    A associação dos moradores da rua visitou-me com um abaixo-assinado para que me desfizesse do galo Chico, pois ele cantava insistentemente das 05:00 às 07:00 horas. Como eu poderia dizer a um galo feliz que deixasse de cantar? Certamente me repondería que preferiria morrer. Mas que diabo me fez acreditar que poderia residir em Brasília, cercada de mansões, de corações "tubarescos", com um galo tenor?
   A princípio, deixava fechada a janela do quarto, evitando que o meu Chico fosse cantar no quintal, mas ele cantava tão alto que ultrapassava as paredes. No auge do meu desespero por não achar uma solução, Chico surpreendeu-me roçando suas penas em minhas lágrimas e, enquanto lhe dizia o quanto era dócil, pensei ter achado a solução. Visitei cada um dos moradores da rua com meu Chico no colo; precisava sensibilizar aquelas pessoas com a ternura que ele tinha para oferecer. Felizmente, todos me deixaram entrar, falar e mostrar as gracinhas que meu galo era capaz de fazer. As crianças se apaixonaram, os adultos o acariciaram, os frios se deixaram conquistar e Dona Aurora, uma idosinha surda, disse que ele nunca a incomodara.  Desde então, Chico passou a ser venerado.
    Quando viajei com a amiga Olga para a Europa, Joelma escreveu-me dizendo que meu Chico estava doente: não cantava, não comia, não brincava... No mesmo dia, comprei passagem e reforcei de amor aquele abraço que marcava uma das mais belas etapas da minha vida. Já no portão, enquanto retirava as malas do táxi, Chico voou em direção ao meu ombro, onde já não cabia; espremendo-se, aninhou-se e cantou às 17:00 horas, saudando a minha chegada. Mal sabia ele, dentro da mala havia milho italiano para o meu dócil tenor...
    Num domingo, o jardineiro Joaquim pediu-me o Chico emprestado para casar com sua galinha Diva, que residia em Sobradinho. Enquanto conversávamos, Chico me olhava inquieto; parecia pedir-me que não negasse... Sensibilizou-me, convenceu-me...  Fui levar meu galo a Sobradinho naquele mesmo dia e pude sentir sua alegria, enamorando-se de Diva. A jovem galinha mostrava-se receptiva e cedeu a ele de imediato. Chico não foi animalesco: rodeou, cortejou e, como havia aprendido lições de amor, foi delicado ao desvirginar Diva. Joaquim ficou impressionado com a educação de Chico, que se comportara como um cavalheiro; não abandonou Diva, ali permaneceu por um bom tempo como se estivesse lhe falando do seu amor à primeira vista. Quando fomos embora, percebi que meu galo estava mesmo apaixonado; entrou novamente em depressão e, na tentativa de alegrá-lo, passamos a segunda-feira pintando o seu retrato. Entre tintas e pincéis, nosso diálogo era uma retrospectiva de verdadeiros sentimentos. Percebi que Chico não melhorava, dizia-me com os olhos que preferiria morrer a optar por mim ou por Diva.
     Na terça-feira, acordei com o vento batendo na janela. Chovia muito. Virgínia aquecia-se entre meus pés, mas meu amado Chico não havia cantado. Estava adormecido para sempre ao meu lado.


Ser Jovem
Catarina Fontan

Ser jovem,
É ver o envelhecimento da pele
Com olhos de juventude.
É sentir-se experiente o suficiente
Para não querer voltar no tempo.
Enquanto sonharmos, enquanto acreditarmos
No que ainda podemos fazer pelos outros
E por nós mesmos, estaremos jovens!
A melhor idade para sentir-se jovem,
É aquela que já temos todas
Ou quase todas as respostas.

(Manuscrito datado: Outubro 2004)

Narrativa
Catarina Fontan

Não quiseram esculpir a minha face
Perdi o encanto de mulher... os acentos
Se a alma, porventura, essa enrugasse
A vida me pagaria com muitos centos

E as curvas do meu corpo jovial
Inclinaram-se danificadas ao abandono
Era corpo predestinado... espiritual
Despido de apegos, eterno outono

Pensativa, pelos lucros e danos
Raconto aqui as minhas sobras
Pinto os olhos, esquecendo os anos
Dou-me corda... “mãos às obras!”

(Manuscrito datado: Junho 2004)


Sou Menina!
Catarina Fontan

Sou uma menina!
Idade avançando, vou somando ganhos,
Fazendo das perdas sabatina...
O corpo ganha beleza em tamanhos,
A alma se enfeita de purpurina.

Sou menina eterna!
Tanto faz meus vinte passados,
Meus trinta em cada perna,
Meus quarenta reciclados...

Sou menina aprendiz!
Dos cinquenta aos sessenta,
Plantei minha flor-de-lis.

Sou menina aos setenta!
Desabrocham as rugas da face,
Dou corda em meu coração lovelace!  

(Manuscrito datado: Maio 1998)

Nada a Fazer
Catarina Fontan

De nada me valeu nosso passeio sensaboria.
Parti-me em pedaços pelo monólogo inesperado.
Olhavas meus pés passo a passo e os seguia
Eu olhava teu passo de vagão puxado.

Preparei-me para esse encontro por tantos dias
No entanto não durou nem uma hora
Meu olhar tentava abrir o teu sorriso,
enquanto o teu acenava indo embora.

Levei na bolsa, um lenço perfumado
prevendo tuas lágrimas de arrependimento
teu semblante era rochedo já habitado
minha estrada fez-se estacionamento.

Esbarrei na tua mão, falsa desatenção
Talvez, tentativa de última magia
Encontro de peles acelerando o coração
Recolheste a sensibilidade, a diplomacia.

Saíste como um leão atrás da caça
Acompanhei tua silhueta até desaparecer
Sentei-me só no banquinho da praça
Buscando forças para te esquecer.

(Manuscrito datado: setembro 2000)


Fartura de Ilusões
Catarina Fontan

Dou-me ilusões com fartura...
Permito que transbordem meu coração...
Algumas brincam comigo;
outras ilusoriamente pressentem
que também sei brincar.

De nada me valem as ilusões perdidas...
Conservo-as, porque, se me deixam feridas,
dão-me igualmente experiências de vida.

Não me roubem as ilusões!
Tenho-as em quantidade, posso doá-las!...
Não me tirem as ilusórias soluções!
Tenho-as como fé, posso ampliá-las!...
  
Manuscrito datado: Setembro 1979


Aceno de Sentimentos
Catarina Fontan

Não sirvo pra ti, sou livre demais
Quando findar o outono estarei distante
Sou uma gaivota de vôos florais
Não me prendo ao amor sufocante

A vida se traça em triste metade
Como posso conhecer todas as flores
Acorrentando minha révora da eternidade?

E esse abraço que recuso e tanto reclamas
Parece enfraquecer a tua alma inata
E essa lágrima sem gemidos que derramas
Parece querer compor uma sonata

Vou levantar sem ruído ofegante
Não me acomhanha, por nós, te peço
Não fala, não se move, não canta...
Não chama, não olha, não me despeço

Não me queira bem nem mal, admira-me!

Manuscrito datado: Fevereiro 2004


Sobras Inteiras
Catarina Fontan

De tudo,
alguma folha caiu da árvore
sobre a minha dormência.
Alguma flor abriu-se,
retornando-me à inocência.

De tudo,
alguma caminhada interrompida
tornou-me renascida
sem que fosse parida
ou que precisasse morrer
para enxergar a vida.

De tudo,
alguma descoberta inexata
fez-me aceitar a sonata,
compreendendo as divergências
terminantes em harmonia
por simples simpatia.

De tudo,
alguma passagem me concedeu a vida
e, elemento da minha própria torcida,
aplaudi-me com bravura,
reparando a rachadura
que o silêncio não se levantou para ver.

De tudo,
fiz dos meus escritos
os sonhos mais bonitos,
os ombros mais consistentes,
as horas mais absorventes,
as histórias mais verdadeiras,
as horas mais Catarineiras
que a velhice teme em se aproximar.  

De tudo,
a alguma soma de idade cheguei.
Embalei o tempo, fiz minha única lei.
Não morri antes e nem tentei,
mas se tivesse que morrer agora,
não deixaria que a vida me colocasse para fora,
mas que a morte desistisse um pouco mais de mim.

De tudo,
não planejei despedida,
se faço de cada partida
um recomeço de vida.

Manuscrito datado: Dezembro 2005


Pessoas
Catarina Fontan

Ah, como é bom reunir pessoas diversas
Olhar para todas e para cada uma delas
Saber de suas expectativas em conversas
Sentir suas verdades pulando pelas janelas

Ah, como é humano compreender as diferenças
Adoçar um coração amargo em tristezas
Apontar a vida para a alma que planta doenças
Poder falar de amor ao semi-Deus cego de delicadezas

Ah, como é vasta de encantos essa raça humana
Tolos caminhantes de passos extensos e sem freios
Quando o tesouro está ali, no grande colo, terra plana
Um por todos, todos por um , nada alheio...

Eu eu, tanto queria transformar a minha fantasia
Unindo almas, corpos e desejos com ternuras
Lapidar corações de pedra que vivem a maresia
Revelando-lhes que a vitória, a vida dá sem bravuras

Manuscrito datado: Abril 2002

Ah, Essas Aves!
Catarina Fontan

Essas aves que fazem o meu dia
Chegam ao amanhecer, elas e o sol
Ensinam amor e paz por cortesia
Reúnem-se, um belo e colorido lençol

Marcam presença sem cobranças ou pedidos
Qualquer grão em sal ou doce descoberto
Faz dos papos abrigos bem nutridos
Quando ausentes, sinto-me num deserto

Oh, Aves companheiras de reflexão
Mensageiras de Deus pela paz
Chegam nos meus momentos de aflição
E no meu vôo, sinto-me capaz
 
Aves brasileiras, francesas, cubanas...
Viajantes sem passaporte, preconceito...
Sem palácios, sem grades, sem cabanas
Vida simples, coração feliz batendo ao peito.

Manuscrito setembro/2000


Reencontro da Alma
Catarina Fontan

A felicidade era plena! Denunciei-me quando abri a janela e perdi a timidez diante do gigante sol. Não estava sendo especulada, mas se o estivesse não me envergonharia; acabara de descobrir-me bela, romântica, preparada para correr ao espelho e tocar cada parte da minha face, do meu corpo,  respirar transformação e sucesso!

Eu acabara de renascer e já dotada de tanta maturidade, mas onde... O que fiz dos meus restos mortais? Deixara-os provavelmente sob a noite fria passada ou pendurados ao meu  alcance? Nunca  nos desfazemos completamente do que fomos, disso sei eu, mas... se já estava realizada  e determinada...  É como uma peça de roupa rasgada... conservá-la, se já temos outra nova,   para    quê? Será assim para tudo? Não, claro que não!

Ainda ontem, convidei a velha amiga Rebecca para um chá informal das seis horas, sentia-me com vontade de "falar pelos cotovelos". Ela não aceitou de imediato, mas também não recusou, precisava pensar. Ora, que tanto essa gente pensa para ser feliz? Como já passava das sete, convidei uma nova amiga, Gilda,  para o chá das nove. Gilda é muito falante e certamente não me deixaria  falar, mas quem sabe estaria precisando falar mais do que eu? A nova amiga foi pontual e  quando saboreávamos o chá, Rebecca telefonou-me já se dizendo a caminho. A princípio, confesso, fiquei irritada, afinal  Gilda surpreendera-me com seu ouvido tolerante; deixara-me falar sem me interromper em nenhum momento, e a presença de Rebecca iria me tirar a espontaneidade. No entanto, contive o impulso de descartar Rebecca e optei por desfrutar das duas, era o momento propício para entender o que eu queria de mim mesma. Foi uma noite agradabilíssima, falamos sobre as velhas e as novas  histórias. Elas puderam falar, afinal; eu aprendi a ouvir somente quando apenas precisava falar.

Cada passo em direção à conscientização é sucesso... é a lucidez da maturidade!
Acabo de abrir a janela e sinto a noite fria tentando cobrir o que se foi de mim. Ah, mas não vou me deixar ao relento, quero-me inteira, com todas as covardias abraçando-se a essa nova coragem que muito se parece com intempestividade, autoexibicionismo... Quero chorar e por mim mesma secar minhas lágrimas de doçura ou de bravura.

Tanto refleti, e não me decidi... e a noite se foi, mas eu fiquei aqui dentro e lá fora... metade para cada lado, tão partida, que voltei a envergonhar-me de mim mesma. Abri a porta e fui buscar a minha autenticidade... Lá estava ela, tímida e apreensiva, esperando pelo meu chamado; feia e fria... quase assustadora, mas denunciando-se interessada em me aceitar!

(Manuscrito datado: maio 1971)


Judith, a Patroa
Catarina Fontan

Éramos somente as duas naquela casa; Judith já trabalhava comigo há cinco anos e mostrava-se sempre muito reservada e dedicada às suas tarefas domésticas. Tínhamos quase a mesma idade, mas enquanto eu vivia cobrindo as dores com sorrisos, Judith cobria os sorrisos com trabalho.
Cheguei à cozinha e a vi descascando batatas. Peguei uma faca e, ajudando-a, perguntei-lhe:
— Judith, nunca me falaste dos teus sonhos; o que sonhas?
Ela me respondeu:
— Claro, D. Catarina, eu sonho em ser patroa um dia!
Respondeu-me com tanta empolgação como se tivesse muito determinada... E dei  continuidade  à nossa conversa:
— Judith, se fosses patroa, que tipo de patroa serias, já pensaste nisso?
— Claro! Ah, eu seria uma patroa muito boa, assim que nem a senhora é para mim, inclusive... também não a obrigaria a usar a touquinha do uniforme. Pensa que não sei, a senhora compra os meus uniformes e antes de me entregar tira e guarda as touquinhas...

No dia seguinte, esperei Judith ir ao mercado e vesti-me de Judith, mas fiz questão de usar uma daquelas touquinhas que estavam guardadas. Olhei-me no espelho e me fiz a mesma pergunta:  que tipo de assistente doméstica você seria, Catarina? Respondi-me: vamos ver!

Quando abri a porta, Judith assustou-se com meu uniforme, mas não com o meu comportamento... Afinal, como Catarina ou Judith, minhas gentilezas eram as mesmas. Auxiliei-a no  armazenamento   das compras e quando me perguntou sobre o uniforme que estava vestindo, esclareci-lhe que a partir daquele momento viveríamos uma nova experiência: ela seria Judith, patroa, e eu,  Catarina,  assistente. A princípio ficou desconcertada, mas convenci-a de que seria muito interessante.

Judith instalou-se no meu quarto e de lá gritava sem suavidade: Catarina, traga o meu chá... e bem quentinho!
Enquanto eu varria a casa, Judith me ordenava que parasse com a limpeza, odiava poeira,  melhor  seria que desse continuidade ao meu trabalho quando ela estivesse fora de casa.
Quando atendi o carteiro à porta, pedi à Judith a gorjeta, mas ela respondeu-me que ele  já estava muito bem pago pelos Correios. Atendeu o telefone e disse à minha irmã que Catarina não  poderia  falar com ela, porque não era hora para conversas: estava lavando a louça do almoço. Pedi-lhe uma folga de meio dia, mas não me concedeu, justificando que não era hora para folgas. Recebeu  uma  velha amiga e ofereceu-lhe um farto lanche , mas não se preocupou comigo, que esperava por alguma sobra...

No dia seguinte, Judith vestiu-se com minhas roupas e quando retornou encontrou a realidade à sua espera. Senti que ficou triste, preferiria viver a fantasia para a qual não estava preparada.   Inicialmente dei-lhe um abraço e, depois, meu parecer sobre sua experiência. Quando lhe perguntei se havia sido uma assistente tão generosa como eu fora todos esses anos com ela, respondeu-me como se estivesse acordando e refletindo sobre cada uma das suas atitudes. Judith chorou, muito decepcionada com seu próprio comportamento, mas de certa forma começava a se preparar para ser a patroa que tanto almejava ser.
Quando me mudei para Brasília, despedimo-nos e Judith seguiu pela escola de patroas em que a vida a matriculara.

(Manuscrito datado: março 2000)


Olhar de Juventude
Catarina Fontan

Sempre tenho uma cadeira de balanço na varanda, mas ao contrário de resignar-me através dela com a velhice (o que é muito comum), crio viagens as quais os transportes coletivos estão incapacitados de fazê-las. É preciso sentir desejo de ficar só para conhecer a profundidade do próprio "EU". Ele já é uma grande comunidade e se não nos proporcionarmos o mais absoluto silêncio, não conseguiremos ouvi-lo. É preciso criar um canal de comunicação entre os nossos "EUS" e a natureza; deixar que se emocionem entre si, que perguntem... que respondam... que contestem... que se entendam...
Há nessa comunidade interior "EUS" que jamais sentiram o perfume das flores, jamais permitimos!
Outros que gritam... choram e nem sabemos porquê, nunca os interrogamos!
Há aqueles que dormem continuamente por lassidão... desistiram!
O balanço cadenciado da cadeira vai nos permitindo visitar cada "EU" tão carente... esquecido... trancado...
Inclusive aqueles que se mostram mais rebeldes, que quebram paredes e tetos.... que chegam à superfície e nos deixam irritadíssimos no cotidiano, tornam-se mais harmônicos quando "os olhamos".  Quantos dos nossos "EUS" já nos pediram "um forte abraço"... uma cantiga de ternura?
Repentinamente, os meus olhos vão pintando o céu em tom de anil; o riacho reciclando de leveza suas águas atormentadas; o vento assobiando, fazendo-se ar puro, brincando de correr sem freios fora e dentro de mim...
A cadeira de balanço "aterrissa"... eu não; a paz do "EU" em mim é plena!
Desfaço a mala, mas não guardarei nas gavetas o seu conteúdo; levar-me-ei inteira!
... E quando a velhice bater à minha porta, saberei recebê-la com olhar de juventude.

Manuscrito datado: Maio 1989


Le Bihan  
Catarina Fontan



Entardecera em Paris e lentamente as velas dos melhores cafés já eram acesas. Via-as através das vidraças com meias cortinas e eu apenas caminhava pelas avenidas como quem nada quer, mas tudo absorve. Paris, ao cair da tarde, faz seu convite aos casais de namorados, amantes da pele e da boa música, amigos solitários que se encontram e fazem do momento o mais saudável silêncio; não querem conversar, mas estar juntos para ouvir a bela melodia, apreciar reações humanas que se despedem do dia. Para finalizar a lista, também surgem repentinamente pessoas como eu que, embora estejam aparentemente sós, não se sentem assim.

Entrei no Le Bihan. Já havia estado lá há muitos anos, mas tudo estava no seu devido lugar e o jovem pianista Raed apenas ganhara fios grisalhos na farta franja. Como é bom rever pessoas que nem chegaram a nos conhecer, mas que por nós tornaram-se conhecidas para a "eternidade". Quando me sentei à mesa, Raed tocava Danz C'est L'amour e me trouxe Piaff à lembrança. Conheci no decorrer da vida muitas mulheres que precisariam ser Piaff uma vez apenas nas suas vidas. Oh, Piaff, ousada e determinada Piaff, sabia que sobreveveria nas nossas mais importantes histórias. Conheci um italiano que me disse uma certa vez: eu compraria, pela Itália, a nacionalidade de Piaff.

Mas aquele era o meu momento, Catarina somava lembranças e abraçava-se fortemente a elas, não lhe permitia perder nem mesmo uma. Pensei em Helena, que me acusava por viver de sonhos, mas ela nunca os havia experimentado, não sabia sonhar! Pensei em Dübanier, velho amigo francês que levou dez anos encorajando-se para se declarar apaixonado por mim, enquanto levei menos de um minuto para convencê-lo do quanto prezava sua amizade e amava a vida. Se amasse uma única pessoa, não teria tempo para amar intensamente a vida. Admirável Dübanier, concordou comigo sentindo-se infeliz. Pensei em João Carlos de Freitas, jovem brasileiro, mineiro, inteligente, talentoso e sensível para a música. Vendeu a casa que herdara do pai para comprar um piano novo. Perguntei-lhe onde colocaria o piano, se não dispunha mais da casa, mas o rapaz era tão determinado que já havia decidido: o piano ficaria no mesmo restaurante em que ele iria tocar em troca de alguma ajuda financeira. Perguntei-lhe então onde iria dormir e ele me respondeu que estava mais preocupado em ensaiar. Fiquei sabendo mais tarde que João dormiu no chão, colado ao piano por alguns anos, até que lhe convidaram para tocar em Berlim.
É sempre assim, a noite chega e com ela vou reunindo meus amigos, meus ídolos, que não cabem na bolsa, porque são todos tão imensos de virtudes e conquistadores do meu coração.
Ao me deitar, pedirei à Saint Germain de Charonne que proteja a todos sob o olhar de Jesus.

Boa noite, Raed!
Boa noite, Piaff!
Boa noite, minha irmã Helena!
Boa noite, Dübanier!
Boa noite, João Carlos!
Até à volta, Le Bihan!
Boa noite, Catarina!
Boa noite, Jesus!

Manuscrito datado: Outubro 2001

6 comentários:

  1. Inesquecível Catarina, impossível não sonhar sempre contigo; impossível não ouvir a canção do teu galo Chico; impossível não rever as lembranças que o teu olhar descobriu e ensinou como olhar. Salve Catarina Fontan! Raquel Nonatto

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  2. Quanta simplicidade no impulso de ser ousada; é preciso saber se pequena para ser grande. Encantador o estilo literário de Catarina Fontan, inconfundível, por isso ETERNA! Não há como sair do EM sem ler Catarina Fontan e depois disso se sentir renascida.
    Respeitosamente, minha admiração e carinho (em memoria).
    Fizze Hernandez

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  3. Hilda Monteiro Sanches1 de set. de 2012, 10:03:00

    Catarina Fontan eternizou-se por si só quando optou por doar a própria vida transformando-a em chocolates. Tive o prazer de conhecer suas obras em benefício das crianças carentes na França... sei o tempo que ela dedicou em vida e que hoje, após sua morte ainda é seguida!
    Obrigada, Catarina, vc é e será sempre uma luz forte!
    Hilda Monteiro Sanches

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  4. Para se pronunciar o nome de Catarina Fontan, é preciso antes fazer silêncio, depois lê-la em silêncio e em seguida ouvir com o coração o que ela sempre quis dizer!
    Catarina ficou, não foi, não irá nunca!
    Bárbara

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  5. Schöne Poesie Website Catarina Fontan trafen im Jahr 2006 in Frankreich und abschätzen, wie groß Krieger. Entschuldigung es ist für immer verschwunden. Hischzze

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  6. É sempre uma ternura imensa reler as obras desta grande mulher. Não há como esquecer seus gestos, suas lições, suas bravuras tão carinhosas...
    Saudade de ti, Catarina!

    Soraya Rangel

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