* ROSA LOBATO DE FARIA (PORTUGAL)







ROSA LOBATO DE FARIA

  
I

Vêm à poesia
como o sargaço à areia.
Ficam soltas, vadias
a namorar-me a veia.

Dizem coisas pequenas
pequenos sons, matizes
que bordam no poema
a borda do que dizes.

Engastam-se na pele                                                          
as palavras-vampiro
e ficam no papel
a latejar comigo.


II

Eu quis um violino no telhado
e uma arara exótica no banho.
Eu quis uma toalha de brocado
e um pavão real do meu tamanho.
Eu quis todos os cheiros do pecado
e toda a santidade que não tenho.

Eu quis uma pintura aos pés da cama
infinita de azul e perspectiva.
Eu quis ouvir ouvir a história de Mira Burana
na hora da orgia prometida.
Eu quis uma opulência de sultana
e a miséria amarga da mendiga.

Eu quis um vinho feito de medronho
de veneno, de beijos, de suspiros.
Eu quis a morte de viver dum sonho
eu quis a sorte de morrer dum tiro.
Eu quis chorar por ti durante o sono
eu quis ao acordar fugir contigo.

Mas tudo o que é excessivo é muito pouco.
Por isso fiquei só, com o meu corpo.


III

E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.

As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.

Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.

E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.


IV

Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé – o meu – sobre o teu pé.
Logo o roçar urgente do joelho
e o ventre mais à frente na maré.

É a onda do ombro que se instala
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
mas o beijo é carícia, de tão leve.

O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente,
ímpeto que não ache um abandono.


Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
Somos a maré alta de quem ama.

Por fim o sono calmo, que não é
senão ternura, intimidade, enleio:
o meu pé descansando no teu pé,
a tua mão dormindo no meu seio.


V

Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantigas dos búzios e do mar.
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.

Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
à saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.

Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber a coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.


VI

Outra coisa que o corpo há quem conheça. 
Eu não. Somente nele me cumpro viva. 
Poema, beijo, estrela, afago, intriga 
só no corpo me são pés e cabeça. 

E coração também que às vezes teça 
razão de me saber mais que a medida 
nessa trágica trama tão antiga 
a que chamam ficar de amor possessa. 

E é de novo poema, beijo, afago. 
É de novo no corpo que te trago 
A exótica festa da nudez, 

E tudo quanto sinto e quanto penso 
Toma corpo no corpo a que pertenço. 
E aqui estou: de barro, como vês. 


VII

De ti só quero o cheiro dos lilases 
e a sedução das coisas que não dizes 
De ti só quero os gestos que não fazes 
e a tua voz de sombras e matizes 
De ti só quero o riso que não ouço 
quando não digo os versos que compus 
De ti só quero um sopro nas janelas 
da casa abandonada dos meus dias 
De ti só quero o eco do teu nome 
e um gosto que não sei de mar e mel 
De ti só quero o pão da minha fome 
mendiga que já sou da tua pele. 


VIII

A tua boca é uva sol e mosto 
vinho luar setembro tangerina 
Tens o cabelo solto sobre a testa 
dois olhos transviados de assassino 
e dizes-me lençol lago floresta 
pássaro sangue cântaro destino 

Devoras os meus braços os meus ombros 
os seios resplandecem de saliva 
e descobres na gruta dos assombros 
a vaga a lava o lume o sumo a vida 

Há algo teatral nas tuas coxas 
nas tuas mãos abertas de profeta 
a rosa do teu corpo quase murcha
insinua a fragrância mais secreta 

Por fim há gritos facas e segredos 
mastros erguidos sob um céu profano 
e a tua nau vencidos mares e medos
navega no meu corpo a todo o pano 

Desvendamos o rasto dos cometas 
a rota secretíssima das aves 
Só me falta a palavra dos poetas 
para dizer amor como tu sabes. 


IX

Eu te prometo meu corpo vivo 
Eu te prometo minha centelha 
minha candura meu paraíso 
minha loucura meu mel de abelha 
eu te prometo meu corpo vivo 

Eu te prometo meu corpo branco 
meu corpo brando meu corpo louco 
minha inventiva meu grito rouco 
tudo o que é muito tudo o que é pouco 
meu corpo casto meu corpo santo 

Eu te prometo meu corpo lasso 
mar de aventura mar de sargaço 
vaga de náufrago onda de espanto 
orla de espuma do meu cansaço 
eu te prometo meu doce pranto 

Eu te prometo todo o meu corpo 
ardendo eterno na nossa cama 
como um abraço como um conforto 
P´ra que me lembres além da chama 
eu te prometo meu corpo morto 


X
O tempo tem aspectos misteriosos:
Um ano passa a toda a velocidade,
E um minuto, se estamos ansiosos
Parece, às vezes, uma eternidade.

Um dia ou é veloz ou pachorrento
-depende do que está a contecer-
O tempo de estudar, pode ser lento.
O tempo de brincar, passa a correr.

E aquela terrível arrelia
Que até te fez chorar, por ser tão má,
deixa passar o tempo. Por magia,
Quando olhamos para trás, já lá não está.


XI

Afirmas que brigámos. Que foi grave.
Que o que dissemos já não tem perdão.
Que vais deixar aí a tua chave
e vais à cave içar o teu malão.

Mas como destrinçar os nossos bens?
Que livro? Que lembranças? Que papel?
Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens.
Não te devolvo - é minha! - a tua pele.

Achei ali um sonho muito velho,
não sei se o queres levar, já está no fio.
E o teu casaco roto, aquele vermelho
que eu costumo vestir quando está frio?

E a planta que eu comprei e tu regavas?
E o sol que dá no quarto de manhã?
É meu o teu cachorro que eu tratava?
É teu o meu canteiro de hortelã?

A qual de nós pertence este destino?
Este beijo era meu? Ou já não era?
E o que faço das praias que não vimos?
Das marés que estão lá à nossa espera?

Dividimos ao meio as madrugadas?
E a falésia das tardes de Novembro?
E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?

De quem é esta briga? Não me lembro.


XII

Algures dentro de mim
uma nascente.
A merecê-la que cântaro?
Que canto?
Sinuoso
vertente
só precário
o trilho das palavras
A dor transborda
a sede permanece.


XIII
Se eu morrer de manhã
abre a janela devagar
e olha com rigor o dia que não tenho.

Não me lamentes. Eu não me entristeço:
ter tido a morte é mais do que mereço
se nem conheço a noite de que venho.

Deixa entrar pela casa um pouco de ar
e um pedaço de céu
- o único que sei.

Talvez um pássaro me estenda a asa
que não saber voar
foi sempre a minha lei.

Não busques o meu hálito no espelho.
Não chames o meu nome que eu não venho
e do mistério nada te direi.

Diz que não estou se alguém bater à porta.
Deixa que eu faça o meu papel de morta
pois não estar é da morte quanto sei.


XIV

De todas as palavras escolhi água,
porque lágrima, chuva, porque mar
porque saliva, bátega, nascente
porque rio, porque sede, porque fonte.
De todas as palavras escolhi dar.

De todas as palavras escolhi flor
porque terra, papoila, cor, semente
porque rosa, recado, porque pele
porque pétala, pólen, porque vento.
De todas as palavras escolhi mel.

De todas as palavras escolhi voz
porque cantiga, riso, porque amor
porque partilha, boca, porque nós
porque segredo, água, mel e flor.

E porque poesia e porque adeus
de todas as palavras escolhi dor.


XV

Vimos chegar as andorinhas
conjugarem-se as estrelas
impacientarem-se os ventos
Agora
esperemos o verão
do teu nascimento tranquilos, preguiçosos
Tão inseparáveis as nossas fomes
Tão emaranhadas as nossas veias
Tão indestrutíveis os nossos sonhos
Espera-te um nome
breve como um beijo
e o reino ilimitado
dos meus braços
Virás
como a luz maior
no solstício de junho.


XVI

Outra coisa que o corpo há quem conheça.
Eu não. Somente nele me cumpro viva.
Poema, beijo, estrela, afago, intriga
Só no corpo me são pés e cabeça.
E coração também que às vezes teça
Razão de me saber mais que medida
Nessa trágica trama tão antiga
A que chamam ficar de amor possessa.
E é de novo poema, beijo, afago.
É de novo corpo que te trago
A exótica festa da nudez.
E tudo quanto sinto e quanto penso
Toma corpo no corpo a que pertenço.
E aqui estou: de barro, como vês.


XVII

Amei-te com as palavras
com o verde ramo das palavras
e a pomba assustada do coração.

Amei-te com os olhos
as pernas e os pés
e todos os gritos que trago
por debaixo da roupa.

Amei-te com as mãos
as mesmas com que te digo adeus.


XVII

O teu amor absoluto
é como a hera que envolve as paredes da casa.
Quero ser a casa
e que arranhes a cal da minha pele
e te aninhes nos meus ouvidos fendas
e perturbes a porta minha boca.
E por fim
procures o perigo das janelas
e enfrentes os meus olhos
infinitos de mágoa
noite e assombração.


XVIII

Quero dar-te a coisa mais pequenina que houver
bago de arroz
grão de areia
semente de linho
suspiro de pássaro
pedra de sal
som de regato
a coisa mais pequena do mundo
a sombra do meu nome
o peso do meu coração na tua pele.


XVIII

Algures dentro de mim
uma nascente.
A merecê-la que cântaro?
Que canto?

Sinuoso
vertente
precário
o trilho das palavras

A dor transborda
A sede permanece.


XIX

Água
é a palavra
que acorda em mim o eco
misterioso do feto.
Desperta em mim
a bruma e o silêncio
dos labirintos íngremes
da alma.

Água
é a palavra
que evoca em mim a fonte
inicial do éden
perdido bucólico lustral.

Água
é a palavra
eterna elementar.

Alma
é a palavra.


4 comentários:

  1. Aqui estou, idolatrada Rosa; aqui estou aos teus pés ouvindo-a declamar. Trago-lhe flores e recebo sorrisos.
    "... Mas como destrinçar os nossos bens?
    Que livro? Que lembranças? Que papel?
    Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens.
    Não te devolvo - é minha! - a tua pele."

    Descansa em paz, Rosa Lobato de Faria, enquanto isso seus versos impulsionam outras Rosas...

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  2. Magnífica! Eterna e magnífica Rosa Lobato de Faria!

    O maior dos meus abraços para todas as poetisas do Expressão Mulher!

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  3. Endosso e coloco o meu aval em todos os comentários elogiosos dirigidos a Rosa Lobato de Faria, senhora de uma inspiração ímpar e de uma facilidade incrível de alinhar em versos os seus sentimentos. Humberto - Poeta.

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  4. Como esquecer Rosa Lobato de Faria? IMPOSSÍVEL!!!
    Falava de pele... de desejos com amor corajoso.

    "... Então já a maré subiu de vez.
    É todo o mar que inunda a nossa cama.
    Afogados de amor e de nudez
    Somos a maré alta de quem ama".

    Soraya Simões

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