* FERNANDA DE CASTRO (Portugal)





Um Grande amor
Fernanda de Castro

Um grande amor não cabe em nenhum verso,
como a vida não cabe num jardim,
como não cabe Deus no Universo
nem o meu coração dentro de mim.

A noite é mais pequena do que o luar,
e é mais vasto o perfume do que a flor.
É a onda mais alta do que o mar.
Não cabe em nenhum verso um grande amor.

Dizer em verso aquilo que se pensa,
ideia de poeta, ideia louca.
Não é bastante a frase mais extensa,
diz mais o beijo do que diz a boca.

Ninguém deve contar o seu segredo.
Versos de amor, só se os fizer assim:
como os pássaros cantam no arvoredo,
como as flores se beijam no jardim.

Que verso incomparável, infinito,
feito de sol, de misterioso brilho,
poderia dizer o que, num grito,
diz a mulher quando lhe nasce um filho?

E quando sobre nós desce a tristeza,
como desce a penumbra sobre o dia,
uma lágrima triste e sem beleza,
diz mais do que a palavra nua e fria.

Redondilha de amor... Para fazê-la,
desse-me Deus a tinta do luar,
a candeia suspensa de uma estrela
e o tinteiro vastíssimo do mar.


Três Poemas da Solidão
Fernanda de Castro

 I 

Nem aqui nem ali: em parte alguma. 
Não é este ou aquele o meu lugar. 
Desço à praia, mergulho as mãos no mar, 
mas do mar, nos meus dedos, fica a espuma. 

Meu jardim, minha cerca, meu pomar. 
Perpassa a Ideia e mói, como verruma. 
Falar mas para quê? Só por falar? 
Já nada quer dizer coisa nenhuma. 

Os instintos à solta, como feras, 
e eu a pensar em velhas primaveras, 
no antigo sortilégio das palavras. 

Agora é tudo igual, prazer e dor, 
e a tua sementeira não dá flor, 
ó triste solidão que as almas lavras. 

II 

Tão só! 
Cada vez são mais longos os caminhos 
que me levam à gente. 
(E os pensamentos fechados em gaiolas, 
as ideias em jaulas.) 

Ah, não fujam de mim! 
Não mordo, não arranho. 
Direi: 
— «Pois não! Ora essa! Tem razão». 

Entanto, na gaiola, 
cantarão em silêncio 
os sonhos, as ideias, 
como pássaros mudos. 

III 

Solidão. 
A multidão em volta 
e o pensamento à solta 
como alado corcel. 
E as ideias dispersas, em tropel, 
como folhas ao vento 
pétalas do Pensamento. 

Solidão. 
A angústia da Cidade, 
a impossível procura da Unidade, 
o clamor 
do silêncio interior, 
mais pungente, estridente, 
que os bárbaros ruídos 
que ferem, dilaceram 
os nervos e os sentidos. 


Eu!
Fernanda de Castro

O homem de génio diz: eu sou.
O poderoso afirma: eu posso.
O rico diz: eu tenho.
E o ambicioso: eu quero.
Eu! Eu! Eu!
E afinal
esses que vivem sós,
completamente sós,
quanto dariam para como tu,
ou como eu,
dizerem simplesmente: nós.


Asa no Espaço 
Fernanda de Castro 

Asa no espaço, vai pensamento!
Na noite azul, minha alma, flutua!
Quero voar no braços do vento,
quero vogar nos barcos da Lua!

Vai, minha alma, branco veleiro,
vai sem destino, a bússola tonta.
Por oceanos de nevoeiro,
corre o impossível, de ponta a ponta.

Quebra a gaiola, pássaro louco!
Não mais fronteiras, foge de mim,
que a terra é curta, que o mar é pouco,
que tudo é perto, princípio e fim.

Castelos fluidos, jardins de espuma,
ilhas de gelo, névoas, cristais,
palácios de ondas, terras de bruma,
asa, mais alto, mais alto, mais!


AUSÊNCIA 
Fernanda de Castro

Partiste e contigo foi
tudo quanto me deixaste.
Tudo quanto um dia olhaste
nos teus olhos mansos foi.

Partiste e tudo levaste.
Não deixaste, no jardim,
rosa que um dia cheiraste,
fruto que um dia colheste,
ar que um dia respiraste.

Só eu fiquei mas sem mim,
que a mim também me levaste.


Onde o Homem não Chega 
Fernanda de Castro

Onde o Homem não chega tudo é puro, 
dessa pureza da primeira infância. 
Tudo é medida, ritmo, concordância, 
tudo é claro e auroral: a noite, o escuro. 

E nem o vendaval é dissonância 
mas promessa de sol e de futuro. 
Quem levantou esse primeiro Muro 
que do perto fez longe, ergueu distância? 

Foi o Homem, com suas mãos de barro, 
com suas mãos perjuras, fel e sarro 
de inútil sofrimento e vil prazer. 

Não é tarde, porém: sacode a lama, 
ergue o facho, levanta a Deus a chama 
e recomeça: acabas de nascer. 


Se os Poetas Dessem as Mãos
Fernanda de Castro

Se os Poetas dessem as mãos 
e fechassem o Mundo 
no grande abraço da Poesia, 
cairiam as grades das prisões 
que nos tolhem os passos, 
os arames farpados 
que nos rasgam os sonhos, 
os muros de silêncio, 
as muralhas da cólera e do ódio, 
as barreiras do medo, 
e o Dia, como um pássaro liberto, 
desdobraria enfim as asas 
sobre a Noite dos homens. 

Se os Poetas Dessem as mãos 
e fechassem o Mundo 
no grande abraço da Poesia. 


Se Tudo Quanto Existe...
Fernanda de Castro

Se tudo quanto existe 
é lenta evolução, 
longa transformação 
sem Deus e sem mistério; 
se tudo no Universo tem sentido 
sem o sopro divino; 
se o segredo da vida, a criação, 
se explica pela ciência, 
e a corrente vital 
é também consequência; 
se a humana consciência 
é simples equação... 
— que significa a vocação do eterno, 
que quer dizer a aspiração do Céu 
e o terror do inferno? 

E se acaso é o instinto a lei da vida, 
se a verdade 
é só necessidade 
inexorável, lenta, laboriosa, 

que sábia explicação 
tem esta frágil, esta inútil rosa? 


Poema da Maternidade
Fernanda de Castro

Pode lá ser! Não quero, não consinto!
Tudo em mim se revolta: a carne, o instinto,
A minha mocidade, o meu amor,
A minha vida em flor!

É mentira! É mentira!
Se o meu filho respira,
Se o meu corpo consente,
Covardemente,
A minh'alma não quer!
Eu não quero ser mãe! Basta-me ser mulher!
Basta-me ser feliz!
E o meu instinto diz:
— «Acabou-se! Acabou-se! Agora renuncia:
Começa a tua noite: acabou-se o teu dia!
Tens vinte anos? Embora! A tua mocidade
Perdeu chama e calor, perdeu a própria idade.
Resigna-te. És mulher! Foi Deus que assim o quis.
Já foste flor: agora és só raiz.» —
Não pode ser! É injusta a minha sorte!
Não quero dar vida a quem me traz a morte!
O meu destino há-de ter outro brilho!
Vida, quero viver! E morro, morro...

Filho!
Pode lá ser, Jesus! Eu não mereço tanto!
Filho da minha dor, eu já não choro — canto!
Filho que Deus me deu! Porquê, Senhor,
Há só uma palavra: Amor, Amor, Amor?!
Dai-me outra voz que nunca tenha dito
Coisas más, coisas vis... e que saiba a infinito...
Dai-me outro coração, mais puro, mais profundo,
Que o meu já se quebrou de encontro ao mundo...
Dai-me outro olhar que nunca tenha olhado,
Que não tenha presente nem passado...
Dai-me outras mãos, que as minhas já tocaram
A vida e a morte... o bem e o mal... e já pecaram...

Filho, por que seria? Ao vires para mim,
Mudaste num jardim
Os espinhos da minha carne triste...
E como conseguiste
Dar uma cor de sol às horas mais sombrias?

Meu menino, dorme, dorme,
E deixa-me cantar
Para afastar
A vida, um papão enorme...
Meu menino, dorme, dorme...

Vamos agora brincar...
Que brinquedo, meu menino?
O mar, o céu, esta rua?
Já te dei o meu destino,
Posso bem dar-te a Lua.
Toma um navio, um cavalo,
Toma agora o mar sem fundo...
Ainda achas pouco? Deixá-lo!
Se quiseres, dou-te o mundo!
Mas por que não vens brincar?
Por que preferes chorar?
Jesus! Que tem o meu filho?
Que vida estranha no brilho
Do seu olhar?
Uma vida inquieta e obscura
Anda a queimar-lhe a frescura ...
Ainda hoje, meu filho, não sorriste
E o teu olhar é triste...
Cheiras a noite, a luto, a azebre...

Senhor! O meu filho tem febre!
O seu hálito queima, o seu olhar escalda...
Ele que tinha um olhar de estrela ou de esmeralda
E um perfume de flor,
Agora tem na boca um amargo sabor
E cheira a noite, a luto, a azebre...

Senhor! O meu filho tem febre!
Tirai-me dos olhos toda a luz!
Livrai-me da blasfémia... Deus! Jesus!
Pois se o meu filho morre, se agoniza,
Por que há flores no chão que ele não pisa?
Se num coval o hei-de pôr, de rastros,
Por que estarão tão altos os astros?
Senhor, eu sou culpada… Eu sei o que é o pecado…
Mas ele, meu Jesus, ainda não tem passado...
Para mim, não há mal que não aceite,
Mas ele, ainda tão perto do teu céu!
A sua vida era beber-me leite...
No olhar com que me olhava tinha um véu
De neblinas, de névoas de outras vidas...
Às vezes, tinha as pálpebras descidas
E punha-se a chorar no meu regaço
Com saudades, talvez, do céu, do espaço...
O meu filho tem febre!
Por que andam a cantar pelos caminhos?
Por que há berços e ninhos?
Vida! O meu filho era belo,
O meu filho era forte!
Vida, que mãe és tu? Defende-me da morte!
Vida! Vida! Vida!

Louvado seja Deus! A morte foi-se embora!
Já não tens febre agora!
Louvado seja Deus! O meu menino vive,
Este menino, o meu, que só eu tive!

E pude blasfemar!
E o meu menino chora, e eu posso já cantar!
E o meu menino canta e eu posso já chorar!
O meu menino vive e toda a vida canta,
Toda a terra é uma fresca e sonora garganta!
Que toda a gente o saiba e toda a terra o veja!
Louvado seja Deus!
Louvado seja!


Os Anos São Degraus 
Fernanda de Castro

Os anos são degraus, a Vida a escada. 
Longa ou curta, só Deus pode medi-la. 
E a Porta, a grande Porta desejada, 
só Deus pode fechá-la, 
pode abri-la. 

São vários os degraus; alguns sombrios, 
outros ao sol, na plena luz dos astros, 
com asas de anjos, harpas celestiais. 
Alguns, quilhas e mastros 
nas mãos dos vendavais. 

Mas tudo são degraus; tudo é fugir 
à humana condição. 
Degrau após degrau, 
tudo é lenta ascensão. 

Senhor, como é possível a descrença, 
imaginar, sequer, que ao fim da Estrada, 
se encontre após esta ansiedade imensa 
uma porta fechada 
e mais nada? 


Silêncio, Nostalgia... 
Fernanda de Castro

Silêncio, nostalgia... 
Hora morta, desfolhada, 
sem dor, sem alegria, 
pelo tempo abandonada. 

Luz de Outono, fria, fria... 
Hora inútil e sombria 
de abandono. 
Não sei se é tédio, sono, 
silêncio ou nostalgia. 

Interminável dia 
de indizíveis cansaços, 
de funda melancolia. 
Sem rumo para os meus passos, 
para que servem meus braços, 
nesta hora fria, fria? 


Não Fora o Mar! 
Fernanda de Castro

Não fora o mar, 
e eu seria feliz na minha rua, 
neste primeiro andar da minha casa 
a ver, de dia, o sol, de noite a lua, 
calada, quieta, sem um golpe de asa. 

Não fora o mar, 
e seriam contados os meus passos, 
tantos para viver, para morrer, 
tantos os movimentos dos meus braços, 
pequena angústia, pequeno prazer. 

Não fora o mar, 
e os seus sonhos seriam sem violência 
como irisadas bolas de sabão, 
efémero cristal, branca aparência, 
e o resto — pingos de água em minha mão. 

Não fora o mar, 
e este cruel desejo de aventura 
seria vaga música ao sol pôr 
nem sequer brasa viva, queimadura, 
pouco mais que o perfume duma flor. 

Não fora o mar 
e o longo apelo, o canto da sereia, 
apenas ilusão, miragem, 
breve canção, passo breve na areia, 
desejo balbuciante de viagem. 

Não fora o mar 
e, resignada, em vez de olhar os astros 
tudo o que é alto, inacessível, fundo, 
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros, 
iria de olhos baixos pelo mundo. 

Não fora o mar 
e o meu canto seria flor e mel, 
asa de borboleta, rouxinol, 
e não rude halali, garra cruel, 
Águia Real que desafia o sol. 

Não fora o mar 
e este potro selvagem, sem arção, 
crinas ao vento, com arreio, 
meu altivo, indomável coração, 

Não fora o mar 
e comeria à mão, 
não fora o mar 
e aceitaria o freio. 


Meditação
Fernanda de Castro

Às vezes, quando a noite vem caindo,
Tranquilamente, sossegadamente,
Encosto-me à janela e vou seguindo
A curva melancólica do Poente.

Não quero a luz acesa. Na penumbra,
Pensa-se mais e pensa-se melhor.
A luz magoa os olhos e deslumbra,
E eu quero ver em mim, ó meu amor!

Para fazer exame de consciência
Quero silêncio, paz, recolhimento
Pois só assim, durante a tua ausência,
Consigo libertar o pensamento.

Procuro então aniquilar em mim,
A nefasta influência que domina
Os meus nervos cansados; mas por fim,
Reconheço que amar-te é minha sina.

Longe de ti atrevo-me a pensar
Nesse estranho rigor que me acorrenta:
E tenho a sensação do alto mar,
Numa noite selvagem de tormenta.

Tens no olhar magias de profeta
Que sabe ler no céu, no mar, nas brasas...
Adivinhas... Serei a borboleta
Que vendo a luz deixa queimar as asas.

No entanto — vê lá tu!— Eu não lamento
Esta vontade que se impõe à minha...
Nem me revolto... cedo ao encantamento...
— Escrava que não soube ser Rainha!


Ah, que Bela Manhã de Primavera!
Fernanda de Castro

Ah, que bela manhã de Primavera!
Abram ao sol as portas, as janelas!
Cheira a café com leite, a sabonete,
a goivos, a sol novo, a vida nova!

A Rua canta!… sinos e pregões,
apitos e buzinas, vozes claras.
–”Gostas de mim?” — “Gosto de ti” — e o céu
cobre a Cidade com seu manto azul.

Ah, que bela manhã de Primavera!

Pousam no Tejo barcos e gaivotas,
com velas novas, belas asas novas.
Os eléctricos voam, transbordantes,
a tilintar, a rir nas campainhas,
e os automóveis, como borboletas,
circulam, tontos, nas ruas sonoras.

Ah, que bela manhã de primavera!

No Tejo, os vaporzinhos de Cacilhas
brincam aos barcos grandes, às viagens,
e o pequeno comboio vai e vem,
como um brinquedo de menino rico.
Confundem-se nas árvores, ao sol,
folhas e asas, pássaros e flores.
É festa em cada rua. Em cada casa,
um canário a cantar, uma cortina,
um craveiro florido na janela.

Despejaram-se armários e gavetas,
frasquinhos de perfume…Toda a gente
foi para a rua de vestido novo,
de fato novo, de gravata nova,
e tudo canta, a Rua é uma canção.

Ah, que bela manhã de Primavera!

–”Gostas de mim?” — é o tema da canção.
–”Gostas de mim?” — pergunta-lhe ele a ela.
–”Gostas de mim?” — pergunta à flor o vento
e a flor ao rouxinol… — “Gostas de mim?”
–”Gostas de mim?”, “Gostas de mim?”
Cheira a goivos, a sol, a vida nova…

Ah, que bela manhã de Primavera!


Perfeição
Fernanda de Castro

Canta. Busca na vida o que é perfeito.
Olha o sol e não queiras outro guia.
Sonha com a noite e absorve, aspira o dia,
tal uma flor que te florisse ao peito.

Da terra maternal, faz o teu leito.
Respira a terra e bebe o luar. Confia.
Faz de cada pena uma alegria
e um bem de cada mal insatisfeito.

Colhe todas as flores do jardim,
todos os frutos do pomar e enfim
colhe todos os sonhos do universo.

Procura eternizar cada momento,
Fecha os olhos a todo o sofrimento
E terás feito a carne do teu verso.


Distância 
Fernanda de Castro 

Não vás para tão longe! 
Vem sentar-te 
Aqui na chaise-longue, ao pé de mim... 
Tenho o desejo doido de contar-te 
Estas saudades que não tinham fim. 

Não vás para tão longe; 
Quero ver 
Se ainda sabes olhar-me como d'antes, 
E se nas tuas mãos acariciantes, 
Inda existe o perfume de que eu gosto. 

Não vás para tão longe! 
Tenho medo 
Do silêncio pesado d'esta sala... 
Como soluça o vento no arvoredo! 
E a tua voz, amor, como se cala! 

Não vás para tão longe! 
Antigamente, 
Era sempre demais o curto espaço 
Que havia entre nós dois... 
Agora, um embaraço, 
Hesitas e depois, 
Com um gesto de tédio e de cansaço, 
Achas inconveniente 
O meu abraço. 

Não vás para tão longe! 
Fica. Inda é tão cedo! 
O vento continua a fustigar 
Os ramos sofredores do arvoredo, 
E eu ponho-me a pensar 
E tenho medo! 

Não vás para tão longe! 
Na sombra impenetrada, 
Como se agita e se debate o vento!... 
Paira nas velhas ruínas do convento. 

Que além se avista, 
A alma melancólica d'um monge 
Que a vida arremessou àquela crista... 

Céu apagado, negro, pessimista, 
E tu sempre mais longe!...


Ó Árvore 
Fernanda de Castro

I

Ó arvore, alguém pensou
Na tua imensa alegria
Quando enfim rompeste a crosta
E alcançaste a luz do dia?

II

Manhã cedo, na mata,
respira-se mais fundo.
Tudo é puro, auroral, duma inocência
de princípio do mundo.
De ti mesma cativa,
sem pressas, folha a folha, vais crescendo
com uma falsa indolência

Árvore, como invejo
a tua paciência!

III

Lentamente, cresceste,
eras frágil, pequena,
como um pé de violeta.
Vergavas sob o peso duma abelha
ou duma borboleta.

Depois, cresceste
a muito custo,
o pé de violeta
transformou-se em arbusto.

Então, ano após ano,
o arbusto fez-se árvore, tão forte
que nem o vento lhe faz dano.

Agora, desse tempo, nada resta:
o é de violeta
é um deus da floresta.

IV

Árvore, alguém te perguntou:
És feliz, infeliz,
Imóvel presa ao chão
Pela raiz?

V

Árvore,
eu sinto em mim o teu sofrimento,
sempre que o vento, à doida, à toa,
te fere, te magoa,
eu tenho calafrios, pesadelos,
como se o vento em vez de sacudir-te
e de arrancar-te as folhas,
me arrancasse os cabelos.

VI

Quando à noite abro as janelas
não é só por ter calor
ou para ver as estrelas:
é mais para respirar
e para dormir melhor,
porque sei que as tuas folhas,
exalam de noite o ar
que me alivia a fadiga
e que me lava os pulmões,
ó árvore minha amiga.

VII

Pássaros, vossa vida que seria
sem o doce aconchego das ramagens
onde escondeis as asas e as plumagens,
quando anoitece, à espera de outro dia?

Quando se cala a vossa melodia
e regressais, exaustos de viagens,
de voos sem destino, de miragens,
de amorosa, secreta fantasia,

voltais à paz do ninho, às vossas casas
onde cabem, exactas, vossas asas
e os filhos que de vós hão-de nascer.

Ó árvores da mata, da floresta,
o chilreio das aves é uma festa
que só a vida pode agradecer.

VIII

Árvore,
alguém ouviu o teu lamento
quando o vento,
esse cavalo doido à desfilada,
deixa a sua pégada
em cada flor, cada rebento,
cada frágil ramada?

IX

Se acaso estás cansado,
se uma pena, um cuidado,
uma onda de tédio
te dão a sensação
de que tudo na vida é sem remédio,
vai procurar a sombra duma árvore,
olha as folhas, os ramos, os botões,
enche de ar os pulmões
e saberás, então,
que essa árvore estava à tua espera,
só para te dizer:
"Queiras ou não,
Amigo, é Primavera!"

X

E tudo o mais que as árvores nos dão
na dádiva telúrica e total
duma vida que à vida se destina,
desde a flor e dos frutos à resina,
desde a resina à casca estaladiça
da cortiça,
da cortiça arrancada
à árvore passiva,
à árvore submissa,
deixando-a sangrar, em carne viva.

E tudo o mais que as árvores nos dão:
frutos de inverno, frutos de verão,
ó árvores das matas e das quintas,
para as bocas sedentas,
para as bocas famintas.

E onde vamos buscar as nossas brasas,
o lume das lareiras, o calor,
e as madeiras das casas,
das vigas ao sobrado?
Acaso não será à tua dor
à dor do tronco retalhado
a golpes de machado?

XI

E não esqueçam, por favor,
essas árvores de flor,
que são só para enfeitas,
com seu jeito, sua graça,
cada rua, cada praça;
que são só para alegrar
as vidas sem horizontes,
como se fossem as fontes,
duma tímida esperança;
que são só para enxugar
o choro duma criança
ou lágrimas de mulher,
duma pessoa qualquer;
que são só para evitar
um gesto desesperado
na Cidade indiferente,
quando sofre, lado a lado,
muita gente, tanta gente:
que são só para abrigar,
quando, à sombra dos seus ramos,
se trocam beijos de amor;
que só servem para pôr
alegria na tristeza
e pouco mais... para dar
uma gota de beleza
a quem por elas passar...

essas árvores de flor
que são só para enfeitar.

XII

Se vires uma árvore,
e se fores comigo,
faz, Irmão, o que eu faço:
pára e dá-lhe um abraço,
não tens melhor amigo.


Alma Serena
Fernanda de Castro

Alma serena, a consciência pura, 
assim eu quero a vida que me resta. 
Saudade não é dor nem amargura, 
dilui-se ao longe a derradeira festa. 

Não me tentam as rotas da aventura, 
agora sei que a minha estrada é esta: 
difícil de subir, áspera e dura, 
mas branca a urze, de oiro puro a giesta. 

Assim meu canto fácil de entender, 
como chuva a cair, planta a nascer, 
como raiz na terra, água corrente. 

Tão fácil o difícil verso obscuro! 
Eu não canto, porém, atrás dum muro, 
eu canto ao sol e para toda a gente. 


Esta Dor que Me Faz Bem
Fernanda de Castro 

As coisas falam comigo
uma linguagem secreta
que é minha, de mais ninguém.
Quem sente este cheiro antigo,
o cheiro da mala preta,
que era tua, minha mãe?

Este cheiro de além-vida
e de indizível tristeza,
do tempo morto, esquecido...
Tão desbotada e puída
aquela fita escocesa
que enfeitava o teu vestido.

Fala comigo e conversa,
na linguagem que eu entendo,
a tua velha gaveta,
a vida nela dispersa
chega à cama onde me estendo
num perfume de violeta.

Vejo as tuas jóias falsas
que usavas todos os dias,
do princípio ao fim do ano,
e ainda oiço as tuas valsas,
minha mãe, e as melodias
que cantavas ao piano.

Vejo brancos, decotados,
os teus sapatos de baile,
um broche em forma de lira,
saia aos folhos engomados
e sobre o vestido um xaile,
um xaile de Caxemira.

Quantas voltas deu na vida
este álbum de retratos,
de veludo cor de tília?
Gente outrora conhecida,
quem lhe deu tantos maus tratos?
Serão todos da família?

Ai, vou fechar na gaveta
a lembrança dolorosa
dos teus laços de cetim,
dos teus ramos de violeta,
do leque de seda rosa
com varetas de marfim.

As coisas falam comigo
numa linguagem secreta,
que é minha, de mais ninguém.
Quero esquecer, não consigo.
Vou guardar na mala preta
esta dor que me faz bem.


Reminiscência
Fernanda de Castro

..."Lisboa, Santarém, Porto, Leiria..."
(eu sabia de cor toda a geografia)
O Senhor Inspector
deu-me a nota mais alta em geografia
e disse gravemente:
- "Continua. Hás-de ser gente..." -

"Ângulo recto, agudo,
cateto, hipotenusa..."
(Já manchara de giz a minha blusa
mas respondia a tudo
e a Professora sorria
enquanto eu papagueava a Geometria)

- "...D.Sancho, o Povoador...
D.Dinis, o Lavrador...
(Tinha então boa memória,
sabia as datas da história...)
1380
1640
1143
em Arcos de Valdevez...
(Muito bem, a pequena é simpática).

- "Vamos lá à gramática." -
"...E, nem, não só, mas também...
conjunções copulativas"
(Eu pensava na alegria
que ia dar a minha mãe,
nas frases admirativas
da velha D.Maria,
a minha primeira mestra:
- Tão novinha e ficou "bem"!" -
e esta suavíssima orquestra
acompanhava, em surdina,
o meu primeiro exame de menina
aplicada, orgulhosa e inteligente...)

- "Vá ao quadro, menina! Docilmente
fiz os problemas, dividi fracções,
disse as regras das quatro operações
e finalmente
O Senhor Inspector felicitou-me,
quis saber o meu nome
e declarou-me
que ficara "distinta" sem favor.

Ah! que esplendor!
Que alegria total e sem mistura,
que orgulho, que vaidade!
Olhei de frente o sol e a claridade
não me cegou.
As estrelas, fitei-as como iguais.
Melhor: como rivais,
e a Humanidade
pareceu-me um rebanho sem vontade,
uma vasta colónia de formigas...
(As minhas pobres, tímidas amigas!)

Pouco depois, em casa,
a testa em fogo, o olhar em brasa,
gritei num desafio
à Terra, ao Céu, ao Mar, ao Rio:
- "O mãe, eu já sei tudo!"
No seu olhar tranquilo, de veludo,
no seu olhar profundo,
que era todo o meu mundo,
passou uma ironia tão velada,
uma ironia
tão funda, tão calada,
que ainda hoje murmuro, cada dia:
"- Ó mãe, eu não sei nada!


Janeiro
Fernanda de Castro

Não chove nem faz sol na minha rua.
É a hora triste. Aquela hora morta
em que uma sombra nos espreita a porta
e pelas frinchas gastas se insinua.

Monótona e distante quer a lua
reflorir ao luar, na minha horta,
aquela cerejeira velha e torta
que há muitos anos amanhece nua.

Um cão sujo, faminto, vagabundo,
com ar de quem já sabe o que é o mundo,
para ali se ficou lambendo uns pratos…

Passa gente embrulhada em roupas velhas…
E sobre as casas, através das telhas,
A sinfonia bárbara dos gatos.


Sonho, Vigília, Noite, Madrugada
Fernanda de Castro

Sonho, vigília, noite, madrugada?
Um a um, desfolhei os sete véus,
e adormecido o corpo, a alma acordada,
um a um, escalei os sete céus.

Sem limites de tempo nem espaço,
quanto tempo durou minha viagem?
Andei mundos sem dor e sem cansaço,
ficou, em meu lugar, a minha imagem.

Agora, de regresso, cumpro a pena.
Tudo esqueci dessa abismal distância
mas algo é diferente: volto à arena
com uma nova inocência, um gosto a infância.

Serena, com uma paz desconhecida,
aceito, sem revolta, a humana sorte:
viver, da Vida, esta pequena vida,
morrer, da Morte, esta pequena morte.


Fim de Outono
Fernanda de Castro

Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

Tudo seco pelas hortas,
Grandes lágrimas no chão
Nem uma flor pelos montes,

Tudo numa quietação
Soluça numa oração
O triste cantar das fontes.

Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

A terra fechou as portas
Aos beijos do sol ardente,
E agora está na agonia...
Valha à terra agonizante
A Santa Virgem Maria!

Fim de Outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...


Mulher Perdida
Fernanda de Castro

Mulher Perdida
Boneca partida,
que aconteceu
à tua vida?

Ave caída,
ninguém te disse
que é bela a vida?

Quem te mandou,
asa ferida,
brincar com a vida?

E hoje, perdida,
quem te há-de achar?
A morte ou a vida?


Menina Perdida
Fernanda de Castro

Menina Perdida
Menina perdida
no bosque da vida.

Os olhos desertos,
os gestos errados,
os passos incertos,
os sonhos cansados.

Menina perdida,
desaparecida
nos longos caminhos
de pedras e espinhos.
Cabelos molhados,
pés nús, alma exangue,
vestidos rasgados,
mãos frias, em sangue.

Menina encontrada
na berma da estrada.
Andava perdida
mas já foi achada,
de branco vestida,
de branco calçada.

Menina perdida
no bosque da vida.


Amo as Palavras
Fernanda de Castro

Amo as palavras.
Não, não amo as palavras,
amo os símbolos.
A Lua é talvez um planeta,
mas a lua que eu amo,
nimbada de luar,
é a lua inventada,
algo de branco, puro,
inacessível,
algo para cantar
quando o silêncio, a noite, a solidão,
são lágrimas de sangue que o Poeta
se recusa a chorar.


Urgente 
Fernanda de Castro

Urgente é construir serenamente
seja o que for, choupana ou catedral,
é trabalhar a pedra, o barro, a cal,
é regressar às fontes, à nascente.

É não deixar perder-se uma semente,
é arrancar as urtigas do quintal,
é fazer duma rosa o roseiral,
sem perder tempo. Agora. Já. É urgente.

Urgente é respeitar o Amigo, o Irmão,
é perdoar, se alguém pede perdão,
é repartir o trigo do celeiro.

Urgente é respirar com alegria,
ouvir cantar a rola, a cotovia,
e plantar no pinhal mais um pinheiro.


O Chiado
Fernanda de Castro

«Rua Garrett», dizem as esquinas, 
mas que importa o que dizem os letreiros, 
Chiado sempre moço das meninas, 
dos ourives, dos chás e dos livreiros? 

Chiado imenso que em dois palmos cabe, 
pedacinho do mundo a palpitar... 
Coração da cidade que nem sabe 
do que é feito esse encanto singular. 

Espelho de mil faces que reflecte
imagens duma raça em movimento...
Corpos vibrando em longo "tête-à-tête"...
Cabeleiras desfeitas pelo vento.

"Vitrine" em que os olhares das mulheres
tomam a forma incerta dum desejo...
De cada montra nascem mil prazeres...
Anda no ar a vibração dum beijo

Ali perto - canteiro da cidade - 
A alma dos jardins, cativa, dorme.
Uma rosa desfaz-se em claridade...
Murcham avencas sob um cacto enorme...

Na montra dos brinquedos - um cartaz
para os olhos purinhos dos bebés - 
Um palhaço com ar de Ferrabraz
faz as delícias dum menino inglês.

Nos ourives as jóias são punhais.
As pedrarias ferem como balas.
Há fluidos perturbante e sensuais
na morbidez perversa das opalas...

"Rua Garrett", dizem as esquinas,
mas que importa o que dizem os letreiros,
Chiado sempre moço da meninas,
dos ourives, dos chás e dos livreiros?


Quem pudera, Cecília!*
Fernanda de Castro

Tenho fome de campo e de verdura,
De terra bem lavrada,
E sede, muita sede de água pura.

Quero pegar no cabo de uma enxada,
Quero cheirar os troncos e as raízes, 
Pisar, descalça, a terra ainda molhada,
Ver, nas noites, o rasto das perdizes.

Já Cecília Meireles o dizia,
Com imenso carinho:
“Portugal não tem campo, tem campinho.”
E ria, ria,
Rasgando as mãos nas silvas,
Comendo amoras, colhendo malmequeres, madressilvas.

Tinhas razão, Cecília.
Em Portugal, as estações são festas,
São festas de família,
Enfiadas, colares de alegrias;
Na Primavera as flores;
Os frutos no Verão, e as romarias;
No Outono o vinho novo e o ritual
Profano das vindimas;
No Inverno,
A mística alegria do Natal,
As portas bem fechadas,
A lenha a crepitar
E as rabanadas.

Quem pudera, Cecília, quem pudera,
Mandar-te para lá, para onde estás,
Um raminho da nossa Primavera.

(*) - poetisa brasileira Cecília Meireles


A Velha
Fernanda de Castro

A Velha tinha uma saia 
de remendos de vida remendada
e um lenço branco de cabelos brancos
na cabeça cansada.

A Velha tinha uma cara
de fomes e de penas amassada, 
e um corpo todo aos nós de árvore seca,
de planta mal regada. 

A Velha tinha um olhar
de estrela morta, de luz apagada,
e duas mãos de terra por lavrar,
de cortiça queimada.

A Velha tinha uma voz
de fio de água, de fonte calada,
e uma boca sem dentes e sem lábios,
de estátua mutilada.

A Velha tinha uma alma
de farrapos de vida alinhavada.
A Velha tinha uma alma
e não tinha mais nada.


O Saco de Retalhos
Fernanda de Castro

Velho saco, onde estavas? No baú
das coisas mortas,
esquecidas como tu?
Guardado na gaveta
como as sedas, as cassas,
os ramos de violeta,
a poeira e as traças?

Velho saco, onde estavas? Pendurado
numa daquelas portas
que um dia se fecharam
sobre a infância, o passado,
e nunca mais se abriram?

Ou no sótão,
na trouxa dos farrapos,
misturado com os trapos?

Velho saco dos tempos esquecidos,
nos teus retalhos desbotados
reconheço os meus bibes,
as chitas e os percais dos meus vestidos.

Estes velhos riscados
foram saias, corpetes, aventais
de criadas que então eram meninas.
E estas cambraias, estas sedas finas,
usou-as minha mãe.

Ó velho saco, feito de retalhos,
rever-te fez-me bem.
Este linho desfeito, remendado,
foi lencol de noivado,
e quantas vezes te vi pôr na cama,
ó minha ama,
esta chita vermelha de ramagens.
Meu velho saco, meu livro de imagens,
rever-te fez-me bem.

Não sei, porém,
que travo amargo esta alegria tem,
que tristeza me fez, que nostalgia,
ver surgir na distância
a minha infância,
descosida, em farrapos,
e reencontrar a minha mocidade
remendada e puída
numa saca de trapos.

Ó saco, ó velho saco de farrapos,
já não sei, afinal,
se ver-te me fez bem ou me fez mal.


A Árvore
Fernanda de Castro

Na Primavera, a Árvore
era um ninho de folhas palpitantes
como pequenas asas verdes.

No Estio,
cobria-se de flores, cada ramo
era um jardim suspenso.

Vinha depois o Outono. As flores mortas
eram leito de pássaros. As folhas
partiam, esvoaçando,
tal borboletas de oiro.

Por fim, o Inverno; em vez de folhas,
braços nus, troncos mortos,
desolada solidão.

Mas um dia...
Um dia a Primavera
voltou com as suas folhas palpitantes
como pequenas asas verdes.

O Estio,
com as suas flores,
com os seus jardins suspensos.

O Outono, com os seus pomos
e as borboletas de oiro
das suas folhas a dançar ao vento.

O Inverno com os seus musgos,
seus descamados braços nus.

Mas a Árvore
a bela Árvore era sempre a mesma
na sua ilimitada confiança.

Foi então que aprendi,
da Árvore, a lição:
A vida é uma longa paciência
e uma longa esperança.


Até que um Dia...
Fernanda de Castro

Meus versos eram rosas, lírios, heras,
borboletas, regatos, cotovias
cantando suas doces melodias,
anjos, sereias, ninfas e quimeras.

Meus versos eram pombas entre as feras
e, na festa das horas e dos dias,
ia dançando penas e alegrias
e o ano tinha quatro primaveras.

E a festa continua... é também festa
o cardo e a urze, o tojo, a murta, a giesta,
a chuva no beiral, o vento Norte,

o gosto a mar, a lágrimas, a sal,
até que um dia a vida, a bem ou mal,
exausta de cantar me empreste à morte.


A Sombra de um Salgueiro
Fernanda de Castro

Fugi das chaminés.
do fumo, que era um denso nevoeiro.
e procurei, na beira dum regato.
a sombra de um salgueiro.

O silêncio, era música do céu;
o ar parado, absorto,
mas na água tranquila
vogava um peixe morto.


Primeira Hora
Fernanda de Castro

O ano desfolhou-se, dia a dia,
como uma flor cortada, um girassol,
e dia a dia a sua voz calou-se
como velha cansada melodia
de velho rouxinol.

Ontem, à meia-noite, a minha rua
abriu de par em par as portas, as janelas,
e deitou fora o lixo, as coisas velhas:
cacos, farrapos, latas e panelas.

Era a Primeira Hora
do ano que chegava.
- E eu? - pensei - Que posso deitar fora?
Que poderemos todos deitar fora?

Ai, Senhor, tanta coisa!
Nem cacos, nem farrapos,
nem latas velhas nem trapos
mas tanta dor,
Senhor,
mal empregada!
Tantos gestos errados,
as pequenas traições,
os pequenos pecados.
As calúnias subtis,
as flores venenosas
da alma envenenada,
e a cicatriz
da culpa inconfessada,
e as palavras que ferem como gumes
de afiadas adagas.

Ressentimentos, azedumes
que Te fazem sangrar as Cinco Chagas.
As larvas dos ciúmes
e as cobras rastejantes
dos pensamentos impuros.
Egoísmos sem fim
e os altos muros
das torres de marfim.
Descrença,
indiferença,
despeitos recalcados,
amassados com ódio, com rancor,
e o amargo sabor
da solidão.

Ah, Senhor, nesta hora de perdão,
nesta Primeira Hora,
quantas coisas podemos deitar fora!


Já Não Vivo, Só Penso
Fernanda de Castro

Já não vivo, só penso. E o pensamento
é uma teia confusa, complicada,
uma renda subtil feita de nada:
de nuvens, de crepúsculos, de vento.

Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento,
e eu cada vez mais vaga, mais alheada.
Percorro o céu e a terra aqui sentada,
sem uma voz, um olhar, um movimento.

Terei morrido já sem o saber?
Seria bom mas não, não pode ser,
ainda me sinto presa por mil laços,

ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços.


Mais um Dia Perdido
Fernanda de Castro

Há dias e que tudo é sem remédio,
em que tudo começa e acaba torto.
Uma folha caiu:
era um pássaro morto.

Neblina. Fim de tarde. Fim de Outono.
Nada nos fala, nos atrai, nos chama.
Choveu, parou a chuva,
ficou, porém, a lama.

Um banco no jardim. Árvores nuas,
um cisne velho, um tanque, água limosa,
nem a relva ficou,
quanto mais uma rosa.

Há barcos, há gaivotas sobre o rio,
e nas ruas há gente, há muitas casas.
Mais um dia perdido:
arrancaram-lhe as asas.


Educação Sexual
Fernanda de Castro

Tenho pena de ti, pobre criança.
Em nome da ciência,
quantos cruéis abusos de confiança!
Roubaram-te a inocência.

Sabes tudo o que havias de saber
a anos de distância.
quando já fosses homem ou mulher,
e sujaram-te a infância.


Quando Te Dói a Alma 
Fernanda de Castro  

Quando estás descontente,
quando perdes a calma
e odeias toda a gente,
quando te dói a alma,

quando sentes, cruel,
o prazer da vingança,
quando um sabor a fel
te proíbe a esperança,

quando as larvas do tédio
te embotam os sentidos,
e o mal é sem remédio
e a ninguém dás ouvidos,

nega, recusa a dor,
abandona o deserto
das almas sem amor
e mergulha o olhar
em tudo o que está certo,
o mar, a fonte, a flor. 


Difícil Alquimia
Fernanda de Castro

Oitenta anos daqui a poucos dias.
Parece muito. É imenso, não é nada.
Ínfimo grão de pó no pó da estrada.
Raminho de Tristezas, de alegrias.

Crepusculares, doces alegrias.
Por vezes, dolorosa a caminhada,
mas sempre, após a noite, a madrugada.
Cantos de rouxinóis, de cotovias.

De tudo um pouco, assim é que é a vida
se a queremos inteira, bem vivida,
às vezes vendaval, outras bonança-

Bem e mal, noite e dia, riso e dor.
Difícil alquimia: espinho e flor,
mas sempre aberta a porta da esperança.


Um Pássaro a Morrer 
Fernanda de Castro

Não é vida nem morte, é uma passagem, 
nem antes nem depois: somente agora, 
um minuto nos tantos duma hora. 
Uma pausa. Um intervalo. Uma viragem. 

Prisioneira de mim, onde a coragem 
de quebrar as algemas, ir-me embora, 
se tudo o que em mim ria agora chora, 
se já não me seduz outra viagem? 

E nada disto é céu nem é inferno. 
Tristeza, só tristeza. Sol de Inverno, 
sem uma flor a abrir na minha mão, 

sem um búzio a cantar ao meu ouvido. 
Só tristeza, um silêncio desmedido 
e um pássaro a morrer: meu coração. 


Testamento 
Fernanda de Castro

Sem lápides, sem chumbo, sem jazigo;
caixão de tábuas, derradeira casa,
onde repousarei, frágil abrigo,
até me libertar num golpe de asa.

Então, quando estiver a sós comigo,
que ninguém chore porque o choro atrasa,
mas que alguém, se quiser, num gesto amigo,
ponha roseiras sobre a campa rasa.

Será medo o que sinto? Não é medo.
Serei, não serei digna do Segredo?
Ah, meu Deus, para lá das nebulosas,

Mereça ou não a expiação, a dor,
entrego-Te a minha alma sem temor.
O que resta, o que sobrar, é para as rosas.


Meditação
Fernanda de Castro

Esta noite foi longa. Longa e vária
de segredo e mistério. Noite densa.
Invisível, tirânica presença
povoou a minha noite solitária.

Ah, a insónia com longas mãos de opala
e fundos olhos cegos!
E o pensamento à solta como o vento
 - montes e  vales, oceanos, pegos!...
e a cabeça que estala,
a cabeça que estala!

Pensar! Como se o humano entendimento
para tanto chegasse! Meditar
em sofás de ridículas saletas
no sábio movimento dos planetas.
Filosofar, oh irrisão,
enquanto mal ou bem
se faz a digestão,
sobre a morte, o devir,
o mistério do ser e do não ser,
e tudo isto a sério, sem sorrir,
como se enfim tudo estivesse dito:
o Caos, a Criação, Deus e o Infinito.
E nem sequer escondes por decoro,
triste mortal com asas de besouro,
ó depenado arcanjo,
que te crês Deus ou pelo menos anjo.

Esta noite foi longa. Longa em mim,
auroral e lunar, sem princípio nem fim.
Meditação
inútil sobre as grades da prisão.
Meditação sobre a existência,
(Existirá ou não?,
ou será tudo simples aparência,
colectiva ilusão?)

Esta noite foi longa. Longa e bela,
calma e branca vigília. 
Um fio de luar entrou pela janela
e um doce cheiro a tília.
Abstracções metafísicas, problemas?
O firmamento era um brocado azul bordado a ouro,
fabuloso tesouro
de incomparáveis gemas.
Tudo era silêncio, quietação.
Compreendi então
que o essencial não era compreender
mas sentir e aceitar
a vida e a morte, o bem e o mal,
a flor, o luar
e a ignorância total.
Não mais filosofias de vaidoso esteta
e não mais este orgulho: sou poeta.
Razão
tem-na, talvez, o louco sem razão,
tem-na o monge na cela,
o cego de nascença, a pedra, o sapo,
a boneca de trapo.
O mais é tudo igual: poetas, corifeus...

Esta noite foi longa. Longa e bela.
Encontrei Deus. 


O Segredo é Amar
Fernanda de Castro

O segredo é amar. Amar a Vida 
com tudo o que há de bom e mau em nós. 
Amar a hora breve e apetecida, 
ouvir os sons em cada voz 
e ver todos os céus em cada olhar. 

Amar por mil razões e sem razão. 
Amar, só por amar, 
com os nervos, o sangue, o coração. 
Viver em cada instante a eternidade 
e ver, na própria sombra, claridade. 

O segredo é amar, mas amar com prazer, 
sem limites, fronteiras, horizonte. 
Beber em cada fonte, 
florir em cada flor, 
nascer em cada ninho, 
sorver a terra inteira como o vinho. 

Amar o ramo em flor que há-de nascer, 
de cada obscura, tímida raiz. 
Amar em cada pedra, em cada ser, 
S. Francisco de Assis. 

Amar o tronco, a folha verde, 
amar cada alegria, cada mágoa, 
pois um beijo de amor jamais se perde 
e cedo refloresce em pão, em água!


Alegria
Fernanda de Castro

De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho...,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nódoa escura
duma nova amargura...
De cada crueldade
que pôs de luto a minha mocidade...
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte...
De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas heróica alegria.

Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.
Doido prazer
de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.

Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.

Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa à raíz.

Volúpia de sentir na minha mão,
a côdea do meu pão.
Volúpia de sentir-me ágil e forte
e de saber enfim que só a morte
é triste e sem remédio.
Prazer de renegar e de destruir o tédio,

Esse estranho cilício,
e de entregar-me à vida a um vício.
Alegria!
Alegria!
Volúpia de sentir-me em cada dia
mais cansada, mais triste, mais dorida
mas cada vez mais agarrada à Vida!


Trova:

"Já nos confins da lembrança
o meu passado se esfuma,
como se tudo o que foi
não fosse coisa nenhuma."

2 comentários:

  1. Humberto Rodrigues Neto4 de set. de 2012, 19:22:00

    Os poemas de Fernanda de Castro emocionaram-me profundamente! Líricos, inspirados e sentimentais! São poemas e sonetos que engrandeceram sobremodo a poesia luso-brasileira pela personalíssima técnica com que ela dominava a arte de construí-los. Seu meritório trabalho provou que ela chegou a ombrear-se aos grandes poetas clássicos de tempos mais antigos. A sua inclusão valorizou de modo ímpar a qualidade do conteúdo deste precioso blog. E mais não digo por supérfluo. Que ela receba, nas paradisíacas regiões dos espaços estelares, os meus mais calorosos parabéns pela preciosa obra que nos legou.

    Humberto-Poeta

    ResponderExcluir


  2. Testamento
    Fernanda de Castro

    Sem lápides, sem chumbo, sem jazigo;
    caixão de tábuas, derradeira casa,
    onde repousarei, frágil abrigo,
    até me libertar num golpe de asa.

    Então, quando estiver a sós comigo,
    que ninguém chore porque o choro atrasa,
    mas que alguém, se quiser, num gesto amigo,
    ponha roseiras sobre a campa rasa.

    Será medo o que sinto? Não é medo.
    Serei, não serei digna do Segredo?
    Ah, meu Deus, para lá das nebulosas,

    Mereça ou não a expiação, a dor,
    entrego-Te a minha alma sem temor.
    O que resta, o que sobrar, é para as rosas.

    ResponderExcluir

Web Statistics