JG DE ARAÚJO JORGE e MARIA HELENA






Soneto para Maria Helena
JG de Araujo Jorge

Tu que por crenças vãs a Vida arrasas

e ante o espelho não queres ver quem és,
que imaginas viver abrindo as asas
e te esqueces de andar com os próprios pés...

Que transformas o Sonho num revés

mesmo a acender o fogo em que te abrasas,
e te algemas as mãos, as mãos escravas
como as do prisioneiro das galés.

Tu que te enganas a falar de alturas

com as palavras mais belas e mais puras
e te imolas num gesto superior,

não percebes nessa ânsia de suicida

que nada há enfim mais alto do que a Vida
quando a erguemos num brinde - ébrios de amor!


Ação de Graças

Maria Helena

       Para José Guilherme (JG de Araujo Jorge)


Depois de tantas dúvidas custosas

 — Já pensando que sim, depois que não — 
Aqui tens minhas mãos cheias de rosas
Que te vão coroar de gratidão.
Aqui tens as palavras calorosas
Que vai dizer ao teu, meu coração:
Deus te encha a vida de horas venturosas,
Amigo bom, meu Poeta e meu Irmão.
Neste mundo cruel, de idéias turvas,
Que o teu caminho nunca tenha curvas
E que jamais encontres quem te dome.
Bem hajas tu, que com tamanha calma,
Fôste buscar à tua própria alma
O pão com que mataste a minha fome.

                   Lisboa, 1959

            Dia de Nossa Senhora da Conceição 


Livro "Concêrto a Quatro Mãos", de JG de Araujo Jorge & Maria Helena,
Editora Vecchi, 3ª Edição, Rio de Janeiro, 1966 (1ª Edição em 1959)



Eu Te Queria Tão Diferente... 
JG de Araujo Jorge 

Há muito eu te esperava...


Mas eu queria que quando chegasses

trouxesses nos teus olhos vultos de bonecas;
e a tua bôca sorrisse o sorriso dos botões
apenas entreabertos;
e as tuas mãos fossem como as folhas fechadas
de um livro que ninguém leu;
e a tua alma fosse mais pura do que a fonte
que canta dentro da pedra
e ainda por sôbre a terra as águas não correu. . .

E tu chegaste...


Mas trouxeste nos olhos sombras estranhas

nuvens dentro de um céu;
e a tua boca sorri o sorriso das rosas encarnadas
cheias de sol e mel;
e as tuas mãos guardam vestígios de carícias que murcharam,
e a tua alma, apesar de ser grande e ser bela,
nos momentos de nossa exaltação,
às vezes me parece pálida e amarela,
como uma folha lida
e já relida
de um romance que andou talvez, numa outra mão.
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Ah! Ninguém saberá nunca o quanto eu sou

desgraçado e infeliz na minha dor,
quando ao te amar assim, como louco
um doente,
encontro em teu amor, às vezes, casualmente,
os restos de outro amor!


Não a querias diferente

Maria Helena

Por que aceitas o Sol, sem resistência,

E não rasgas o peito em frases vãs,
Se vês o Sol poluído da insistência 
De tôdas as manhãs?
Por que esperas da bôca já falada
A pureza da luz e das safiras,
Se a tua própria bôca está manchada
De tôdas as mentiras?

Por que pedes entradas verdadeiras,

Isentas de bassaltos e de espinhos,
Se tens nos pés os sulcos das poeiras
De todos os caminhos?
Por que exiges uns olhos sem pecado
Numa paisagem transbordante de ânsias,
Se até o vento tem o olhar culpado
De tôdas as distâncias?
Por que olhas as mãos "dela" com desprêzo
— Porque os seus dedos já não são intactos —
Se as tuas mãos se vergam sob o pêso
De todos os contactos?
Por que não negas o esplendor da Lua
Na beleza das noites singulares,
Se traz desflorações na carne nua,
De todos os luares?

Por que tentas impor limitação

Aos passos que seguiram sem clausuras,
Se as próprias asas medem a extensão
De tôdas as alturas?
Por que pensas tornar-lhe o rosto langue
E as artérias alheias a matizes,
Se nas veias da terra grita o sangue
De tôdas as raízes?
Não levantes o horror de uma procela
Que fatalmente mataria os dois,
Faz-te a ti mesmo e ao mundo dignos "dela"
E quere-lhe depois.


                              Caminhos

                            JG de Araujo Jorge

                    Nos teus lábios há dois beijos,
                    nas tuas mãos há dois ninhos,
                    nos teus olhos: dois desejos,
                    no teu destino: caminhos...                                                                                                                               

                                                           Vedação

                                                       Maria Helena

                                        Nos lábios trago o Infinito,

                                        Mas o coração, sòzinho,
                                        Que neste mundo onde habito,
                                        Não tenho nem dou caminho.


Naturismo

JG de Araujo Jorge

Foi aprendendo a ler que aprendi a pensar

e hoje pelo pensar sou um degenerado,
— Já foi puro o meu Ser, tal como a luz e o ar,
como o ar e a luz de um céu sereno e descampado...

Bem que podia ter êsse olhar encantado

do homem que não sabia onde parava o Mar...
Sendo bruto, talvez eu me fizesse amado!
Bruto, — que importa!? — ao menos poderia amar!

Teria por meu templo o côncavo profundo

dos céus, e a religião que acaso professasse
correria sem deuses, livre, pelo mundo...

No pedestal da ciência: — a beleza sem véus!

E o mais sábio seria o ignorante que amasse
a música da terra e a poesia dos Céus!


Humanidade

Maria Helena

Irmão distante e de alma irrequieta

Que voas, nem tu sabes a que altura
E em ti mesmo andas disperso,
Não invejes os brutos! Sê Poeta,
que nada vale a ventura
De poder chorar em verso.


                              Traição

                          JG de Araujo Jorge

                       O teu rosto é puro e oval

                       imaterial como o luar...

                        — o que trai afinal

                           é o teu olhar...
                                              
                                                     Motivo
                                               Maria Helena

                                      Tudo o que eu trago no fundo

                                      Dizem meus olhos culpados...

                                      — Por isso é que ando no mundo

                                      De olhos fechados...


Colegial

JG de Araujo Jorge

Gosto de vê-la, sim... Quando à tarde ela vem

fisionomia suave, ingênuamente franca...
Tôda a rua se alegra, e eu me alegro também
com o seu vulto feliz, saia azul, blusa branca...

Quantos nadas de sonho o seu olhar contém!

A luz viva do olhar ninguém talvez lhe arranca...
— Gosto de vê-la, sim... E ficam-lhe tão bem
aquela saia azul, e aquela blusa branca...

Azul: — azul é a côr da vida que ela sonha!

E branca: — branca é a côr de sua alma de criança
onde ela própria se olha irrequieta e risonha...

Feliz... Não tem presente e ainda nem tem passado...

Só o futuro, — e o futuro é uma imensa esperança
um mundo que ainda fica oculto do outro lado!


Uns Metros Mais À Frente

Maria Helena

De blusa branca e saia azul, lá vai

Na luz da tarde, a caminhar, contente,
Sem ver que a noite, lentamente cai
E cai também o Tempo, lentamente.
A bôca sem a contração de um ai,
Enche de sonho e cânticos o poente...
Nem amanhã nem ontem... E lá vai
Na vivência gloriosa do Presente.

Passa à tardinha, numa espera franca,

Menina ingênua e doce e incorrompida
— De saia tôda azul e blusa branca.
O mundo só é mau e triste e duro,
Quando na rua trágica da vida
Já se dobrou a esquina do Futuro.


Lirismo

JG de Araujo Jorge

Eu quero ser o poeta da ternura

o poeta dos carinhos, da meigice,
das palavras de amor e de doçura
que ainda ninguém pensou... e ninguém disse...

O poeta dos castelos e dos beijos

quando vivemos longamente, a sós,
— que põe vultos de sonhos nos desejos
e que põe "abat-jours" na própria voz...

Eu quero ser o poeta que te enleia

e te encanta, e te embriaga, e te seduz,
— que no teu corpo branco como a areia
compõe versos de amor feitos de luz!

O poeta que em teus olhos, num momento

acende estranhos mundos e visões,
e que adivinha o teu deslumbramento
deslumbrado com as próprias emoções...

Eu quero ser o poeta dos anseios,

dessa minha alma irrefletida e louca,
— e desnudando o encanto dos teus seios
murmurar versos para a tua bôca.

Quero ser êsse poeta que tu queres

e os meus versos — assim como um perfume,
hão-de embriagar a alma das mulheres
para o teu sofrimento... o teu ciúme...

O poeta que põe alma nos sentidos

e as belezas incógnitas desvenda,
que murmura canções aos teus ouvidos
e fala sôbre o amor num tom de lenda...

Eu quero ser o poeta da ternura

que espalha poemas e a sonhar caminha,
e que encontra afinal tôda a ventura
nessa ventura de sentir-te minha!

O poeta a quem tua alma se prendeu,

êsse que chamas louco e sonhador,
para imortalizar teu nome e o meu
na imortalização do nosso amor!


Lirismo... inconsiguido

Maria Helena

Eu quis ser o poeta alheio à mágoa

De primeiro ser só, triste depois,
Mas foi a solidão que não deu água
À minha sêde lírica de dois...

Eu quis ser o poeta do Sol alto,

Do dia claro, das manhãs sem fim,
Mas foi a noite que tomou de assalto
O Céu oculto que eu trazia em mim.
Eu quis ser o poeta que chamou
A Vida numa voz vibrante e erguida,
Mas foi a Morte imensa que escutou
O imenso apêlo que eu fazia à Vida.
Sonhei correr o mundo lés-a-lés
Desde o primeiro alvor da minha infância.
Mas foi o chão que me acorrenta os pés
Que acordou o meu sonho de distância.

Eu quis ser o poeta do mar largo
Buscando a côr de inéditas paisagens,
Mas foi o rio, num travor amargo,
Que me obrigou à sujeição das margens
Eu quis ser o poeta dos Espaços
voando numa Amplidão que fôsse minha,
Mas foi a realidade dos meus passos
Que me indicou as asas que não tinha,
Então, num grito que ninguém concebe,
Dei-me tôda ao luar, num abandono,
Mas foi a insônia que alagou de febre
Os meus olhos abertos e sem sono.

Quis as Estrêlas e com gestos sãos
Ergui as mãos aos Céus para colhê-las.
Mas foi o pó, presente em minhas mãos,
Que encheu de si a ausência das Estrêlas,
Mal haja o meu destino singular
Que me privou de versos e de bem,
Que a minha dor não me deixou cantar
Nem rimou com a dor de mais ninguém.
Mal haja esta alma sôfrega de ideais,
Tão única, tão vil, tão incompleta,
Que não podendo ser igual às mais,
Nem conseguiu, ao menos, ser poeta!


                              Elegia

                         JG de Araujo Jorge

                             Ontem

                 dando-te o verde dos meus olhos,
               quis pintar de esperança o nosso sonho
                   que hoje morre... sem côr...

               Dá-me pois, agora, o negro dos teus olhos,

                   quero vestir de luto o nosso sonho
                              de amor...
                                             
                                                      Arco-íris
                                                  Maria Helena

                                      Que seja num tom risonho

                                      Ou com laivos de amargor
                                      — Que para pintar um sonho
                                      Nunca me importou a côr...


Dúvida

JG de Araujo Jorge

E êle tinha uma vontade louca de segurar as ondas no seu vaivém...



Certeza

Maria Helena

Senhor:

Despe-me a humanidade que me apouca
E dá-me um maior bem,
Que eu tenho uma vontade louca
de segurar as ondas
No seu vaivém...

Dize à minha franqueza que se afaste

Ou se prostre a meus pés
E à minha voz dá fôrça que lhe baste
Para mandar na fôrça das marés.
Deixa-me ver, isenta de embaraço,
Mais do que as outras gentes:
Que sem entraves nem cansaço
A energia do meu braço
afaste ou aproxime os continentes.
Quero ser eu marcando as rotas
E dando aos ventos direção
E que no Espaço o vôo das gaivotas
Obedeça ao sinal da minha mão.

Quero ser eu na noite inteiramente nua

Sossegando as espumas ao luar,
Quando a sêde branquíssima da Lua
Vai beber água ao mar.
Que se morram em mim prantos e agravos
Que o Destino gerou:
Quero ser eu dobrando os cabos
Que inda ninguém dobrou.
A arder em ânsia,
Meus dedos imortais
Desenharão no enigma da Distância
O sinuoso perfil dos litorais.
Quando a tardinha naufragar em oiro,
Aos areais pelo vento despenteados,
Hei-de-lhes dar o movimento loiro
Dos meus cabelos desmanchados.

De tal maneira me darei ao mar

Nas meias tintas dos crepúsculos,
que hei-de sentir meu sangue a palpitar
Nas veias dos moluscos
E na fé que me exalta
E que em mim mesma floresceu,
Hei-de ser eu na maré-alta
Como na maré baixa hei-de ser eu.
Senhor dos Céus
Que tão bem vês as mágoas que consomem
A minha carne limitada,
Faze de mim um deus
Que ser apenas homem
Não chega para nada!


                              Instantâneo no. 1

                                  JG de Araujo Jorge

            Há por certo insconsciência, maldade, ironia, 

               no destino que um dia cruza duas vidas
                   e alheio a uma tragédia imensa:

                      — põe numa, um grande amor,

                        e noutra, a indiferença!
                                                  
                                                 Fundura
                                                      Maria Helena

                                   Pode, ainda, o Destino aprofundar o mal,

                                     Quando, num incontido e duro anseio,
                                        Põe em dois corações amor igual
                                            E a Morte de permeio...


Canção do Meu Abandono

JG de Araujo Jorge

Não, depois de te amar não posso amar ninguém!

Que importa se as ruas estão cheias de mulheres
esbanjando belezas e promessas
ao alcance da mão?

Se tu já não me queres

é funda e sem remédio a minha solidão.

Era tão fácil ser feliz quando estavas comigo!

Quantas vêzes, sem motivo nenhum, ouvi teu riso
rindo feliz, como um guiso
em tua bôca?
E todo momento
mesmo sem te beijar eu te estava beijando:
— com as mãos, com os olhos, com o pensamento,
numa ansiedade louca!

Nossos olhos, meu Deus! nossos olhos, os meus

nos teus,
os teus
nos meus,
se misturavam confundindo as côres
ansiosos como os olhos
que se dizem adeus...

Não era adeus, no entanto, o que estava em teus olhos

e nos meus,
era êxtase, ventura, infinito, langor,
era uma estranha, uma esquisita, uma ansiosa mistura 
de ternura com ternura
no mesmo olhar de amor!

Ainda ontem, cada instante era uma nova espera...

Deslumbramento, alegria exuberante
e sem limite...
E de repente,
de repente eu me sinto triste como um velho muro
cheio de hera
embora a luz do sol num delírio palpite!

Não, depois de te amar não posso amar ninguém!

Podia até morrer, se já não há belezas ignoradas
quando inteira te despi,
nem alegrias incalculadas
depois das que senti...

Depois de te amar assim, como um deus, como um louco,

nada me bastará, e se tudo é tão pouco...
... eu devia morrer...


Canção da Minha Esperança

Maria Helena

Não!A gente não morre quando quer,

Inda quando as tristezas nos consomem.
Há sempre luz no olhar de uma mulher
E sangue oculto na intenção de um homem.

Mesmo que o tempo seja apenas dor

E da desilusão se fique prisioneiro.
Vai-se um amor? Depois vem outro amor
Talvez maIor do que o primeiro.
Sonho que se afogou em baixa-mar,
De nôvo se há-de erguer, cheio de fé,
Que mesmo sem ninguém o suspeitar,
Volta a encher a maré.
Não penses que jamais hás-de achar fundo
Nem que entre as tuas mãos não terás outra mão.
Pode a Vida matar o sonho e o Sol e o mundo,
Mas não nos mata o coração.


Contradição

JG de Araujo Jorge

                     Para Maria Helena


Sou a contradição de duas almas, trago-as

gêmeas no mesmo corpo e unidas num só "Eu":
— uma, que sonha e canta, e faz das próprias mágoas
poemas para iludir a dor que já sofreu...
Outra, que vive e pensa, e aos contínuos atritos
da vida, já atingiu a realidade em si,
e sublima o recalque de ânsias e de gritos
num sorriso, que às vêzes, sem querer... sorri...

Uma que crê no mundo e que trabalha o belo,

que constrói com paciência, pelas próprias mãos,
nas ruínas de um castelo desfeito, o castelo
nôvo que há de hospedar os velhos sonhos vãos!
Outra, que sabe rir e escarnecer de tudo!
Quando fere, é impiedosa, irônica e mordaz,
e há muito já concluiu: é inútil, não me iludo,
a verdade é a ilusão que dura um pouco mais!

Uma, que quando a sós, o olhar longe povoa

de imagens que a lembrança vai traçando a giz,
é sonhadora e ingênua, e ingênuamente boa
ao pensar que algum dia ainda há de ser feliz!
Outra, que afeita à luta, ao trabalhar seus dias,
sofre em silêncio e encontra em seu sofrer remédio,
— diz que Deus é um brinquedo das filosofias,
a invenção de algum louco em momento de tédio!

Uma, cujo otimismo é uma luz franca e clara,

julgando o mundo bom e achando a vida bela;
outra, materialista e rude, — o mundo encara
com um vago e estranho olhar onde há chamas de vela!

Uma que não cresceu e que se sente criança,

irrequieta e feliz, faz da vida um brinquedo;
outra, — que sepultou sua última esperança
e ao agir previdente, às vêzes sente mêdo...

..........................................................


Aquela é a voz feliz das planícies contentes

matizadas com as veias azuis das correntes;
essa, é a voz que caiu e rolou das montanhas!
E é sentindo-me assim, que às vêzes penso, como
pode ter minha vida a forma de um só pomo
e o sabor de dois frutos de árvores estranhas!

..........................................................


Sou a contradição de duas almas, — uma

onde nas horas suaves de poesia existo;
outra, — a alma que crê que não tem alma alguma
e desceu da montanha tal como o Anti-Cristo!

Duas margens debruando a risca de um caminho;

duas almas; se aquela é flor, essa é espinho,
se uma pisa a terra... a outra se ergue, no céu...
Duas almas... dois lados de uma só moeda;
uma é vinho, sazona; a outra é vinagre, azeda;
uma é amarga, só sal... a outra é doce, é só mel!



                                            Plenitude

                                                 Maria Helena

                               Para José Guilherme (JG de Araujo Jorge)


                              De alma em festa ao contacto do nascente,

                                  Mordendo a côr dos longes matinais,
                                   E pisar terra ainda sem semente
                                Com a vertigem dos primeiros pais.
                                 Não poluir rosas castas e modestas
                              Que se erguem, a tremer, da terra dura,
                                 Mas profanar o corpo das florestas
                                 Com duas mãos famintas de aventura.

                                  Ir por estradas firmes e reais

                                Num ritmo tão audaz, quanto profundo,
                                  Tendo nos olhos sôfregos de mais,
                                   Uma janela aberta para o mundo.
                               Sorver o mel de tôdas as fragrâncias,
                              Achando, embora, convulsões de espinhos,
                                De olhos feridos de vencer distâncias
                                  E pés cansados de medir caminhos.
                                 Ser bem humano, poeta e vagabundo;
                                Viver a própria Vida, salto-a-salto,
                                   Tendo raízes para ir mais fundo
                                  E possuindo asas para ir mais alto.

                                 Alcançar o que o frêmito nos pede

                                Mudando em sonho vivo o sonho morto
                                E ultrapassar a altura que nos mede
                                 E nos limita a dimensão do corpo.
                              Sorver o mel de tôdas as fragrâncias
                                  Na apoteose de manhãs gostosas,
                               E consentir que a bôca dê mil beijos
                             Como em Maio as roseiras dão mil rosas.
                                 Erguer um nôvo plano bem ousado
                                 Com a Vida a exigir em cada veia
                               E, encostando a cabeça a um peito amado,
                               Florir à noite, como a Lua-cheia.

                                 Misto de Céu e terra, na loucura

                                 De ser raiz e fôlha em ascenção 
                                E erguer o vôo para além da Altura
                                Tendo nas asas o sabor do chão.
                               Desprezando tentáculos e escolhos,
                               Seguir, em frente, numa luta imbele,
                               Com manhãs a nascer dentro dos olhos
                                 E corolas florindo ao rés da pele.
                                  Ser réstia de luar e charco fundo
                                — Condição de patrícios e plebeus —
                              E dar ao mundo o que pertence ao mundo,
                                E dar a Deus o que pertence a Deus.

                               Ser pecador nos braços que nos tomem

                                E viver sem renúncias e sem pranto,
                               Primeiro, na certeza de ser homem,
                                E só depois na glória de ser santo.
                               Ah! Vida intensa, intensamente rude,
                                Pudesse eu, no mais báquico festim,
                                  Embriagar-me da tua plenitude
                                 E beber do teu vinho até o fim!

                                             M.H. (Poema inédito)

                                            Estoril, 30-VIII-1958   



INFORMAÇÃO DO EM:

Mais parcerias da poetisa MARIA HELENA com o poeta brasileiro J. G. DE ARAUJO JORGE:

https://mariahelena-versosqueportugalnaoviu.blogspot.com




7 comentários:

  1. "Depois de te amar assim, como um deus, como um louco,
    nada me bastará, e se tudo é tão pouco...
    ... eu devia morrer..." E salve JG, porque ninguém diria isso tão poeticamente.

    "Por que esperas da bôca já falada
    A pureza da luz e das safiras,
    Se a tua própria bôca está manchada
    De tôdas as mentiras?" E assim... Maria Helena sem desabrigar-se do amor ensina-nos o arrebate da franqueza. Vi a foto, bela mulher!

    Muito feliz com ReVIVÊNCIAS,
    Raquel Nonatto

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  2. O que dizer do meu poeta preferido dos tempos de adolescência? Torno a encontrá-lo aqui e amá-lo com o mesmo amor. No entanto, descobri com um certo desconforto, que Maria Helena muitas vezes o supera. Digo "desconforto" porque penso no que perdi naquela fase. Por que só alguns bons aparecem e outros tantos bons ficam escondidos? Por outro lado, JG mostra sempre estar em conflito e consegue colocar melodia em todos eles, enquanto Maria Helena se mostra toda, convicta e una. Grandes inspiradores para quaisquer poetas, ainda mais aqueles apaixonados por duetos.Obrigada amigas Regina e Ilka por estes momentos de pleno enlevo.

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  3. Paulo Ventura - Campinas14 de mai. de 2013, 18:17:00

    Parabéns, Cleide, pela análise correta do contexto formado entre esses dois maravilhosos poetas. Curti sofregamente as obras do JG, com o que embalava um amor sofrido, dolorido, não concretizado - apesar de nos termos amado profundamente. O tempo passou, mas as palavras e as canções ficaram marcadas indelevelmente. Foi bom descobrir este espaço, onde se pode externar toda a emoção de reviver um passado maravilhoso, principalmente por habitarmos hoje um mundo sem cor, sem sal, sem amor verdadeiro.

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  4. Passaram-se dois meses da atualização, mas eu regresso, regresso sempre porque "Envolvências" me dá um gosto de "Quero Mais".
    Raquel Nonatto

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  5. Estou fazendo questão de registrar aqui a minha conclusão de leitura (com atraso, eu reconheço), mas bastante satisfatória, sobre essa parceria poética tão perfeita que envolve o leitor, presenteando-lhe de uma essência que mais parece eterna. Já não se constrói mais amores bonitos, mas a proposta de ENVOLVÊNCIAS do EM, sobretudo com a dupla sensibilizante JG e Maria Helena, convida-nos a resgatar a beleza e os detalhes inigualáveis do AMOR.
    ENVOLVÊNCIAS não é para uma passagem rápida, ocasional, é e certamente será o lugar mais doce, no qual estaremos marcando nossa ida sem pressa de volta.
    Às amigas, Ilka e Regina, meu carinhoso abraço como agradecimento pela preciosidade da obra tão bem reproduzida em cores e essências que fazem lembrar o PASSADO EM AMOR.
    Fizze Hernandez

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  6. tive o prazer em apresentar trechos de poesias, no programa Top-Rio ao ar as sextas feiras na Rádio Rio de Janeiro, maior parte das poesias eram de J.G. de Araujo jorge, devidamente creditadas ao autor, foi para mim, grande emoção poder compartilhar sentimentos , emoções que marcaram minha vida.

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    Respostas
    1. Prezado apreciador da Boa Poesia,

      fico feliz e emocionado com a sua descrição à leitura de trechos do Grande Poeta J. G. de Araujo Jorge. Muito breve ele deverá voltar às minhas páginas. Dê-me o prazer e a honra da sua companhia!

      Abraço carinhoso do Blogue Expressão Mulher-EM e Votos de Saúde, PAZ e Poesia.
      (Ilka Vieira, in memoriam, e Regina Coeli)
      Rio de Janeiro/RJ.

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