GLÓRIA MARREIROS (Portugal)




Espelho
(Glória Marreiros)

A dança dos anos é feita em meu rosto,
Quando olho no espelho e vejo a idade
Despir os meus sonhos das réstias de jade,
Que outrora soltava o vinho do mosto.

Agora os reflexos emitem desgosto
E luas sem prata, que afeta e invade
Brinquedos deixados no cais da saudade,
Em bancos partidos isentos de encosto.

Aperto os meus seios. São castas sem vida.
A boca é licor derramado na lida
Que tive na terra que nunca encontrei.

Dorida dos anos, parti meu espelho
Com raiva de ver o meu rosto tão velho
Num baile de luas, descrente da lei. 


Vendendo Esperanças
(Glória Marreiros) 

Eu vendo esperanças, à noite, ao relento,
E faço um bom preço, acessível a todos.
Já pus na bancada os anúncios, engodos,
Prà venda ser feita sem grande argumento. 

A arte, o negócio foi sempre o talento
Que fez eu sair da penumbra dos lodos.
Há gentes gostando de ver os meus modos,
Vendendo sem ter um real vencimento. 

Chegou-se à bancada um pobre, faminto,
Sem ter onde pôr os atilhos do cinto
Nas calças sem cós, suplicando mudanças. 

Olhei-o no rosto. Revi-me na era 
Do tempo passado, sem ter primavera,
Perdi o negócio, mas dei-lhe esperanças.


Aquilo que Sou
(Glória Marreiros)

Eu sou a magia do teu pensamento,
Quimera que trazes no peito escondida,
Prefácio dum livro, falando da vida
Que doiras ao sol e refrescas no vento. 

Eu sou a visão que te ampara, em tormento,
Levanta teu ego com força sentida
E sou a mensagem, por ti sempre lida,
Na folha de outono deixada ao relento. 

Agora que sabes aquilo que sou,
A força que emito no tudo que dou,
Avança, sem medo, na tua jornada. 

Depois de trilhares teu doce caminho,
Com penas de pena alvora-me um ninho
E deita-me lá, porque vivo sem nada. 


Aromas de Infância
(Glória Marreiros)

Aromas de infância na terra perdida
São luzes brilhando nas minhas memórias,
Lembranças puídas de tantas histórias
Que a noite contava, florindo-me a vida. 

São restos de cal em paredes de ermida,
Que lembra o passado das minhas vitórias
E guarda relíquias de sonhos e glórias
Na bíblia que trago, no peito, escondida. 

Ficou-me o aroma nos sulcos do rosto
E as cores de fogo raiando o sol-pôsto
Que exalta a magia das flores silvestres. 

A terra perdeu-se na bruma que evade
A caixa dos anos, da minha saudade,
Pintada no tempo que é mestre dos mestres!


Essência do Existir
(Glória Marreiros) 

Existem primaveras com mil flores
e verões feitos de oiro e calmaria.
Outonos onde a fruta é uma orgia
a dar ao nosso inverno outros sabores. 

Existem as manhãs plenas de cores
que atingem o seu o seu rubro p’lo meio-dia.
E tardes de novenas e magia,
com noites de luar e de louvores. 

Existem paixões plenas de carinho
na ânsia de encontrarem o caminho
das terras que lhes foram prometidas. 

Existem, sem se ver, tantas visões
que pulsam, sem parar, nos corações
dos sonhos que alimentam  nossas vidas.


Cesto Vazio
(Glória Marreiros) 

Colhi os sorrisos que a vida me deu
Em cesto de afetos, com tons de alvorada.
Depois, fui com eles, em longa jornada,
Por vales e montes, num louco apogeu. 

Vi pedras caídas nas noites de breu
E choros vermelhos em boca calada,
Caminhos cortados, com muita ramada, 
E ninhos sem aves, perdidos, no céu. 

Senti  que esses vultos que vi no caminho
Olhavam meu cesto, queriam carinho,
Que desse aos desejos os sonhos de outrora. 

Peguei nos sorrisos e dei-os a todos,
Saíram, contentes, do fundo dos lodos.
De cesto vazio, feliz, fui-me embora.

  
Aurora Sublimada 
(Glória Marreiros) 

A luz da aurora invade o meu mundo,
Sacia-me a fome, alimenta a raiz
Do sonho tingido com néctar de anis
E tons de esperança, que sempre me inundo. 

O sol anilou-me com brilho profundo
E pôs no meu ser madrugadas de lis.
Natal duma infância, no tempo feliz,
Quimera que fala ao sorriso infecundo. 

Eu pinto poemas com laivos de afã,
Olhando as estrelas, no céu da manhã,
E pondo na noite o que foi minha cruz. 

Escrevo no espaço, sem ter horizonte,
Mitigo mil sedes, sem ter uma fonte,
Bebendo as auroras, em cachos de luz.


Ano Passado
(Glória Marreiros) 

No ano passado, em penumbra de riso,
senti os teus beijos, em sonho secreto,
traziam volúpias com falta de afeto
por longos receios, sem margens de aviso. 

No céu das ausências, tivemos o siso
de pôr as estrelas coladas no teto
das curvas da mágoa, sentindo o mais reto
caminho, onde a chuva destrói o que é liso.

Já é Ano Novo. Tecemos vitórias,
fizemos registos das nossas memórias
na cor do poente, onde estão novas sinas. 

Amor, já não sei do meu ano passado…
Invento esperanças, dum novo reinado,
Mas temo leis densas que tragam neblinas.  


Cereja
(Glória Marreiros) 

Eu sou a cereja vermelha e madura
Que vai nos teus braços em cesto de vime.
E junto das outras, há algo que oprime
Aroma sentido, que em ti não perdura. 

Tentei desviar-me e suster a doçura
Da carne que tenho e que julgas um crime.
Amor, tu não vez que meu âmbar redime
Orgias secretas da tua clausura. 

Colheste-me em dia que o tempo não quis.
Deixas-te o pomar a gemer, infeliz,
Trindades da hora, que nunca me invoca. 

Cereja num cesto é somente o que sou.
Mas tenho esperança que nunca te dou
O dócil sentir do meu sumo na boca…


Levedação
(Glória Marreiros) 

Cantei os meus versos ainda menina,
No tempo em que o tempo passava sem horas
E a vida era quieta, não tinha demoras,
Porque eu não sabia o que era a rotina. 

Os ventos agrestes trouxeram-me a sina
Que lia à lareira comendo as amoras
Do verão que passava, deixando as esporas
Cravadas na alma, por falsa doutrina. 

A chuva caía deixando os regatos
Causar, nas encostas, os seus desacatos
Em rios pequenos, formosos, dispersos. 

As mós do passado torturam sem dó
Memórias e sonhos desfeitos em pó,
Que amasso e levedam saudades e versos.  


Mulher e Mãe
(Glória Marreiros) 

Mulher e mãe, foi junto do teu seio
Que abri a porta mágica da vida.
Tu foste para mim terna guarida,
Serás eternamente o meu enleio. 

O calor do teu beijo sempre veio
Nas horas da minha alma sucumbida.
Quer no céu ou na terra, mãe querida,
És a mão que me ajuda, és firme esteio. 

Mulher com diadema de luar
Num castelo de amor, o nosso lar,
Rainha que vestiu de pano-cru. 

Tua alma de cetim foi esse trono
Onde eu, hoje, coloco o meu outono
Pedindo a Deus que seja como tu.


Outono
(Glória Marreiros) 

Outono das folhas caídas no chão,
Das tardes serenas onde há sentimento,
Do cheiro a castanhas trazido no vento
E de aves que partem em busca de pão.

Outono vestido com tons de verão
Que doiram a hora se a hora é tormento
E a chuva castiga, num dia cinzento,
O sol a dormir no beiral da razão. 

Há beijos que voam por entre a folhagem
E são arco íris gerando a imagem
De vidas que vivem dormindo o seu sono. 

Por mais fustigante não há vento norte
E nem tempestade, agressiva, que corte
A ímpar beleza que existe no outono! 


O Retrato
(Glória Marreiros) 

Ali, onde existiu a minha casa,
Vagueiam meus afetos, com ternura,
Envoltos num mistério de lonjura,
Presentes numa pedra, em campa rasa. 

Ali, nasceu meu sonho. Fez-se brasa
Extinta numa idade prematura.
A chuva foi caindo, em amargura,
E minha alma é lagoa que não vaza. 

E dançam mil promessas nos escombros,
Deixando um peso imenso nos meus ombros,
Por ver a casa ser uma ruína. 

As pedras da saudade, sobre o chão,
Guardaram o retrato, o coração,
Dos tempos em que fui uma menina. 


A Casa de Ontem  
(Glória Marreiros)

Lembro a casa velhinha onde nasci,
com paredes caiadas de açucenas.
E minha mãe, nas suas cantilenas,
parece que ‘inda hoje me sorri. 

Passaram tantos anos, onde, ali,
as tardes eram doces e serenas.
Os sinos convidavam às novenas
Nos sons feitos de névoa e organdi. 

Agora vejo o musgo que se envolve
no telhado que nunca mais dissolve
a saudade que chora por sinais… 

Na minha casa, de ontem, quando entro
escuto e sinto ouvir bater lá dentro
o coração, secreto, dos meus pais.

            
Sofrer
(Glória Marreiros) 

Sofrer é ter na mão sina talhada
por mundos sem mil astros siderais.
É ser um outro Ser e pouco mais,
é sentir que há ausência de alvorada. 

Sofrer é possuir, despedaçada,
a rede onde se pescam os sinais
de bonança, em marés e temporais,
p’ra conquistar confins feitos de nada. 

Sofrer é viver só, não ter ninguém.
Sentir as ventanias, do Além,
levar, em remoinho, eternidade. 

Sofrer é findar mudo, sem ter voz,
não desfazer a sina que há em nós,
com medo de alcançar mais liberdade!


Meus Olhos
(Glória Marreiros) 

Parti no Outono do meu desalento,
levei na bagagem o som dos meus ais
e a marca das dores, que são os sinais
que o tempo deixou na minha alma, em tormento. 

Dormi, sem ninguém, a gemer ao relento,
olhando as estrelas, por entre olivais.
comi as migalhas que comem pardais,
bebi o suor do Verão mais sedento.

Cheguei no Inverno. Encontrei tempestade.
Vi corpos caídos, num hino à saudade,
sucata de vidas por entre os escolhos. 

Naquela algazarra de sonhos perdidos,
vi estrelas tombadas, sem luz nem sentidos,
e nesses destroços estavam meus olhos. 


Filho
(Glória Marreiros) 

Filho do meu porvir, és a guarida
das almas que suspiram de cansaços.
Dá-lhe o calor, fremente, dos abraços
que fecundam a terra apetecida. 

A tua juventude é luz e vida
a latejar no oco dos meus passos 
para levar, num voo, pelos espaços,
o renascer da seiva prometida. 

Tu és raiz e sangue do meu Ser,
o filho que fará acontecer
madrugadas de pão, novas ideias! 

O meu amor por ti é tão profundo,
que olvidei o futuro do meu mundo
e pu-lo a circular nas tuas veias!  


Os Deuses
(Glória Marreiros) 

Na mesa tive o pão a toda a hora,
o vinho tinha aroma favorito,
o doce era manjar nunca restrito,
e os deuses não queriam ir embora. 

Diziam que a amizade sempre mora
no peito que é fiel, doce e contrito.
Falavam do poema que era escrito
com tinta que emoldura a luz da aurora. 

Chegou o temporal. Faltou o pão.
A mesa foi levada, em turbilhão,
e os sonhos pereceram, sem abrigos. 

Os deuses foram ter com outros santo,
deixaram-me a chorar, nua, sem manto,
e vi que nunca foram meus amigos.


Meus Bens
(Glória Marreiros)  

Penhoraram-me os bens. Vivo sem nada.
Levaram-me o vestido de brocado.
E o lençol nupcial, com seu bordado,
São saudade carpindo em luz velada. 

A tela cor-de-rosa foi levada
Com o berço que eu tinha, do passado,
Até, as secas flores do toucado
Caíram, uma a uma pela estrada. 

Quem primeiro partiu, aos turbilhões,
Foi a taça onde eu tinha as ilusões
Com memórias dos tempos de bonança. 

Depois, foram estrelas, diademas,
Mas quando me levaram os poemas
Chorei como se fosse uma criança. 


Despida
(Glória Marreiros) 

Despida de roupa, de crenças e medos,
estive na cama contigo deitada;
e fiz do prazer a mais doce jornada,
cansada da luta de tantos enredos. 

Galguei, destemida, por entre folguedos,
no tempo em que a hora jamais foi marcada,
a tarde alcançou talismã de alvorada,
envolta em mistérios risonhos e ledos. 

Medimos espaços, que o tempo não quis
medir noutra era, em que os tons de matiz
ornavam meu dedo, sem pedra de jade.  

A cama foi mar de prazer e de bruma
nas ondas passadas, por nós, uma a uma,
banhando a nudez do amor, liberdade!             

          
A Casa
(Glória Marreiros)
                       
Desmoronou-se, em dor, aquela casa
que parecia ser antiga e forte.
Agora, ali, prostrada à sua sorte
agoniza no gelo onde se abrasa...               

Quem passa não se importa que ela jaza
por terra, espezinhada pela morte.
Ninguém recorda a linha do seu porte,
deixá-la, assim, tombada em campa rasa.               

Dos alicerces gritam vozes de alma,
em febril tempestade que se acalma,
querem saber do corpo que era seu.                 

Agora está no chão, eu sempre soube
que era frágil, erguida só de adobe,
a casa... sombra e cinza que sou eu!


Meu Relicário
(Glória Marreiros)

No meu relicário há rosas sem fim,
Caídas, tombadas, no tempo que passa,
Perderam seu âmbar vestígios de graça
E lembram pedaços que noivam meu fim.

São nesses sudários que o rosto carmim
Deixou um sorriso que, leve, esvoaça,
Em castos poemas escritos com raça,
Na chuva a cantar em redor do meu sim.

Mas eu muito sei dos fracassos da vida,
Dos tempos passados, deixando vencida
A caixa das contas que tem meu rosário.

Perdi a esperança no espaço da lei,
Onde há rosas secas e beijos que dei
Sem troca, a murcharem, no meu relicário. 


Meu Vestido de Noiva
(Glória Marreiros)

Meu vestido de noiva era um desvelo,
Com tons de malva rosa, em pleno estio,
E sumptuosa fita, com o brio
De transformar meu corpo num modelo.

Cada prega continha o doce apelo
Dum poema cosido com o fio
Da esperança tecida no macio
Olhar da madrugada, puro e belo.

Foi meu seio de âmbar, adornado
Com jóias e matizes, num bailado,
Que fez de mim a noiva mais bonita.

Eu nunca quis despir aquele encanto.
O meu vestido é, hoje, um Campo Santo,
Onde o corpo se ajusta à sua fita. 


Um Dia…
(Glória Marreiros) 

Na memória do tempo, eles dirão
com profunda saudade e nostalgia:
- Onde é que está a avó, com a magia
dos seus poemas feitos de emoção?... 

- Ó mana, não está junto ao fogão,
onde há tempos atrás ela sorria…
- Ó mano, olha a cadeira está vazia
e não reluz o brilho sobre o chão… 

- Já não vem no Natal nem pelos Anos,
não nos fala de amor, nem dos seus planos,
a casa, a casa dela, escureceu! 

- Já sei. Quem me contou foi nosso pai:
Ela partiu sorrindo e sem um ai,
é uma estrela a mais, que está no céu!...                                  


A Mesa
(Glória Marreiros)

Vem ter à minha mesa, ao meu banquete,
E come dos meus beijos enrolados
Em pétalas, que são significados
De espelhos, onde a alma se reflete.

A toalha parece um alegrete
De lírios e de goivos sublimados
Na minha solidão, sem convidados,
Onde a vela de aromas se derrete.

A brisa vem dizer-me que não vens
Na cor do arco íris que susténs,
Com rosas que cingi em lindos molhos.

E na mesa vazia, o teu sinal
É sublimado, apenas, no caudal
Das lágrimas que caem dos meus olhos.


Partimos
(Glória Marreiros) 

Chegaste na hora que eu ia partir.
Trazias quimeras fechadas na mão
e sonhos trepando em sublime ilusão,
p’ra pôr sobre a mesa do nosso porvir. 

Trazias sorrisos de estrelas a rir
no céu cor de prata do teu coração.
No cheiro dos goivos plantaste a razão
que põe nas ausências discreto polir. 

Fiquei  indecisa  perante o banquete,
mas tinha comprado, a chorar, o bilhete
do trem mais veloz, que não volta, depois… 

Subi um degrau e senti minha idade,
olhei nos teus olhos e vi a saudade,
peguei-te na mão e partimos os dois.


Testamento 
(Glória Marreiros)         

Minha alma morreu. E deixou-me sem trono.
Não teve suspiros de alguém a chorar,
coberta com laivos da luz do luar,
e ungida com óleos das chuvas de Outono. 

Eu vi-a partir nas memórias dum sono
profundo e submerso em procelas de mar.
Sedenta do fogo que emerge dum lar
que faz da paixão meretriz, sem ter dono. 

Agora, sozinha, no átrio do espanto,
apenas matéria me envolve este pranto
que agita pedaços de amor e tormento.

Eu fui ao notário, que às vezes me acalma,
fiel dos haveres que tinha minha alma,
mas ele me disse: Não há testamento!            


O Trinco
(Glória Marreiros)

Puxava sem parar aquele trinco
Que a porta dos meus pais tinha na frente,
Zangava a minha mãe tão frequentemente,
Mas tinha poucos anos, talvez cinco…

Aquela brincadeira deixou vinco
Que o tempo não desfez e, certamente,
Ao lembrá-la renasce uma semente
Nas memórias que guardo com afinco.

A porta de castanho, bem polida,
Hoje é madeira seca, enegrecida,
Por tempos que se fecham na memória.

O trinco, desgastado, está comigo,
Nas horas da saudade é um abrigo
Que abre a porta de anil da minha infância. 


Tarde de Rosas
(Glória Marreiros)

Na tarde de rosas, que o céu nos quis dar,
senti o teu corpo, a rezar, sobre o meu,
um hino de amor, Primavera de encanto,
na beira da terra orvalhada de mel.
Meus seios giravam na seda das mãos,
ardiam na fúria intensa e sagrada,
que atinge apogeu e se veste de Sol.
Teu peito, sereno, foi pão e foi néctar
na voz sensual, saborosa, do libar...
segredo secreto da nossa união.
Depois, o regresso, imortal, sem história,
sem fim, porque a vida ficou bem marcada
na tarde de rosas que o céu nos quis dar!...


Nasci no Outono
(Glória Marreiros)

Nasci no outono, mas trago comigo
o doce do mel que inebria a montanha,
o cesto de vime com néctar a figo
e a face morena, da cor da castanha.

Nasci no outono, mas trago as mil chuvas
que deixam na terra um sabor a luar,
e lavam a cinza que habita nas uvas
que são para o vinho que vai ao altar.

Nasci no outono, mas trago quimeras
e brisas que beijam sementes caídas
no verde-amarelo das folhas das heras
que enfeitam valados, em almas sofridas.

Nasci no outono, mas trago vindimas
que fazem poemas de amor, liberdade,
e são a magia de imagens e rimas
que bailam nos sonhos, em hino à saudade.

Nasci no outono, mas trago os marfins
dos sons das manhãs, suculentas e puras,
que tingem os campos e formam jardins
de frutas que descem, à terra, maduras.

Nasci no outono, mas trago o fulgor
que afasta do peito tristeza, abandono.
Nasci com o tom que só doira o sol-pôr
das tardes dos dias, serenos, de outono.


As Tuas Mãos
(Glória Marreiros)

Vi as tuas mãos envolvidas
no silêncio da espera.
Pegavam noutras mãos mais
frágeis e mais sensíveis.
E nesse contacto tão suave, 
vi a minha saudade transformada
na promessa
da tua juventude.
As tuas mãos recebiam
as minhas, como herança.
E sobre a ponte dos nossos dedos
emaranhados como cadeias de hera,
vi a estrada onde se acelera
a carruagem do meu passado,
agora, depositado
no futuro das tuas mãos
de primavera.


Quero
(Glória Marreiros)

Quero acreditar
nos ecos das palavras incontidas,
no desfilar das novas sensações,
nos sonhos que incorporam as guaridas
que hão-de albergar vindouras gerações!
Quero acreditar
no sangue que percorre a juventude,
na visão dum futuro promissor,
num campo semeado de virtude
a florir de esperança, luz e cor!
Quero acreditar
num cais onde a razão aporta e fica,
na brisa mensageira que se apraz
em trazer a manhã que não abdica
do sol de outras manhãs plenas de paz!
Quero acreditar
na vontade, infinita, dos mais novos
em ser, no mundo inteiro, outro pilar
de pão, justiça, amor e luz nos povos
que querem, como eu, acreditar!


Beijos de Amor
(Glória Marreiros)

Beijos de amor são rosas desfolhadas
Bailando na ternura dum jardim.
E descobrindo as alvas madrugadas
No poente que existe, agora, em mim.

Beijos de amor são vidas a cantar
Na viagem dum tempo que termina.
E são corpos, na Terra, a navegar
Nos meus sonhos, desfeitos, de menina.

Beijos de amor são verbos conjugados
No infinito sol da primavera.
E são mãos a pousar sobre os teclados
Do coração que está à minha espera.

Beijos de amor são lábios de safira
Escondendo segredos no regaço...
E são voos que minha alma ainda aspira,
No ritmo intemporal do meu espaço!


No Banco do Jardim
(Glória Marreiros)

Sentado no banco que está no jardim,
tu és um poeta, num hino à saudade…
Esperas, sozinho, não temes o fim,
suplicas, somente, mais pão, dignidade.

Tu és o avô, dos avós do país,
que vê no poema espiral de bonança.
E trazes na alma a firmeza, a raiz,
da rima que vive e que nunca se cansa.

Tu foste, na fábrica, o dom do exemplo,
cumpriste os horários com fé e rigor.
E foste, no lar, a coluna dum templo
sustendo mil versos que à vida dão cor.

Poemas brotaram do chão que cavaste,
nasceram as flores da fruta e do pão.
No mar onde, à noite, cansado pescaste,
venceste procelas, em terna oração.

Sentado no banco, saúdas quem passa
e não te quer ver, apressado na meta,
mas tu não te importas, tens veia, tens raça,
e tens o condão de saber ser Poeta!


Saudade
(Glória Marreiros)

Eu tenho saudade dos sonhos que tive,
Dos beijos sentidos que não foram dados,
Dos passos perdidos e nunca encontrados
No som do silêncio rolando em declive.

Eu tenho saudade do tempo onde estive;
Da névoa serena contendo noivados
De casta amargura, mas tão maculados
De falsa doutrina, luz parda que obtive.

E sou a faminta do pão da verdade.
A nuvem dispersa que geme ao sol-pôr,
A débil mendiga de um pingo de amor,
Ventura esquecida sem dó nem piedade.

Abismo e silêncio são mar que me invade
Em sombra que reina no tempo e na dor
De invernos que gritam p’lo beijo maior
Do canto longínquo da minha saudade.      


5 comentários:

  1. Manuel Eugénio Angeja de Sá1 de fev. de 2013, 10:26:00

    Manifesto-me encantado com a presente actualização deste espaço de poesia e de amizade que integra um considerável acervo poético daquela que eu, e muitos dos nossos pares, consideramos ser uma das grandes poetas portuguesas contemporâneas; a ilustre amiga Glória Marreiros.
    Falar de qualidade em relação à sua poesia seria pura redundância porque é, de sobejo, reconhecida. Mas o encantamento com que a lemos e apreciamos a sua muita sensibilidade, esses são de sublinhar e enaltecer.
    Parabéns, pois, amigas minhas Regina Coeli e Ilka Vieira. Merecem-nos, sem dúvida, pelas escolhas que vêm fazendo, o que evidencia, à saciedade, o vosso conhecimento da cultura lusófona, de que justamente nos orgulhamos.

    Aqui vos deixo o meu fraterno abraço.
    Eugénio de Sá - Portugal



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    1. Faço minhas as palavras do Manuel Eugénio. A poeta Gloria Marreiros é sem dúvida das melhores poetas portuguesas e, deixa-nos encantados e suspensos, sempre que nos deliciamos com os seus sonetos. Para a Expressão Mulher é uma honra . Tenho a ventura de ter essa grande poeta como minha amiga, que muito estimo. Hoje reli uma vez mais os seus versos que um dia a tornarão, santa ou imortal. Um beijo amigo da Donzilia Martins

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  2. "Nasci no outono, mas trago quimeras
    e brisas que beijam sementes caídas
    no verde-amarelo das folhas das heras
    que enfeitam valados, em almas sofridas."

    Parabéns, poetisa Glória Marreiros, o poema NASCI NO OUTONO prova que independente da estação que nascemos é possível construir a alma com a magia de cada uma delas e tornar a vida mais plena!

    Gostei muito de todos os seus poemas!
    Abraços,
    Verinha Consuelo

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  3. Boa trade estimadas e muito queridas escritoras Regina Coeli e Ilka Vieira, sei que estou um pouco em falta com vocês, pois recebi seu convite ainda no ano passado para fazer parte deste significativo espaço literário, contudo quando recebi estava doente e em seguida viajei para NY, onde retornei a 15 dias, tendo meu equipamento de trabalho danificado, a onde tenho todo material e contato de todos. Assim que for solucionado enviarei para vocês os meus poemas.
    Hoje desejo dar meus cumprimentos a nossa muito especial Gloria Marreiros, grande escritora, e ser humano impecável, que tive o prazer de tê-la em nossa AVSPE. Ler seus belos Sonetos são motivo da boa leitura. Abraços para vocês, com admiração, Efigênia Coutinho

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  4. Entrei casualmente neste espaço literário de grande qualidade e fiquei muito feliz por encontrar representada a poesia portuguesa pela grande poetisa Glória Marreiros, minha querida afilhada. Sou Maria José Fraqueza uma poetisa e escritora portguesa conhecedora do mundo poétcio português através de concursos literários que promove e realiza. Muitos Parabéns!



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